sábado, 26 de dezembro de 2015

Quem consome quem?


Quando eu era adolescente era comum que houvesse uma discussão sobre quem, na hora h, "comia" quem - o usual era dizer que o homem "comia" mas havia uma outra corrente que defendia que ao comer a boca é quem se abre, tal qual acontece com o corpo feminino.

Lembrei imediatamente disso ao ver aquele cara sentado dentro de seu carro conversível tomando uma cerveja em frente ao bar. Provavelmente ele estava se achando o cara naquele carro, se achando o inã de mulheres, acreditando que o carro mostrava o que ele possuía e sobre como isso podia atrair a massa feminina e lhe conceder o poder da escolha - entre todas as interessadas, quem teria a honra de sentar no seu banco do carona!

Eu contudo questionava a boca que se abria ao engolir: quantas das candidatas a sentar naquele banco para se exibir na frente do bar só queriam consumir o status que aquele cara ostentava? Será que ele já tinha pensado sobre o quanto era tão consumível e consumido como produto quanto as garotas que ele consumia ou isso era coisa da minha cabeça pós chopps?

Na minha cebaça eu via a cena: só faltava o leitor de cósigo de barras no caixa. A questão é que essa transação envolvia apenas preços e nenhum valor. Um drink por um papo, um jantar no Soho por um beijo, uma viagem incrível por uma noite juntos. Há quem venda, há quem compre e há quem comprando venda e vendendo compre.

Me pergunto: quando a etiqueta de preço vem com valor agregado ao invés do valor real deixa de poder ser considerado prostituição? Quando Padre Fábio (esse lindo) fala do amor ao inútil, como sair da teia capitalista que sustenta (literalmente) as relações? O "esperto" é quem acha que vende ou quem acha que compra? Alguém de fato é?

Conheço algumas pessoas que tem muito dinheiro e sei que ao menos uma dessas pessoas acabou "optando" pelo caminho da "transparência" na sua balança comercial: só paga em cash pelo que quer consumir. Dá pra julgar? Eu entendo a desconfiança: como saber exatamente o que o outro vê e querde nós? Acredito que a maioria em algum momento já se perguntou se havia interesse real na gente ou se ali estavamos para suprir alguma demanda ou carência de um sábado a noite. Imagine a insegurança (de quem reflete) de acrescentar o elemento conta bancária a essa equação...

Final de ano é a época em que a gente costuma colocar coisas na balança. Sentimentos, comportamentos, projetos, finanças. O que eu desejo pra esse 2016 é que a gente viva momentos de valor com pessoas de valor que nos queiram perto pelo que somos e isso eu sei: não tem preço.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Por trás desses óculos quadrados eu sinto tanto



Oi.

Eu sei que é tarde e você já deve estar dormindo, mas hoje eu me senti intimidante de novo e tão sozinha que eu não soube o que fazer. Eu sei que eu pareço séria com meus óculos quadrados e com as minhas calças compridas e que você vai dizer que essa minha cara de intelectual é que faz com que as pessoas não saibam o que me dizer, mas você sabe que eu tenho medo é de que todo mundo descubra que eu sou essa moleca apavorada com a ideia que os pais não estejam no portão da escola na hora da saída.

Eu insisto em fazer as coisas tão devagarinho em um mundo que roda depressa demais. Eu não tenho pressa ao escutar uma história. Eu não tenho medo de amar pessoas que moram longe. Eu olho nos olhos. E choro assistindo filme – não só filme de amor, mas principalmente filme de vida real em que criança é abandonada sem proteção e a violência escancara seu domínio e me faz sentir o quanto eu sou pequena diante de tudo isso. Ser tão pequena diante de todas as injustiças do mundo, de todos os sofrimentos, de cada abandono, dói muito. E eu fico muito séria quando penso nessas coisas, mesmo se eu não estiver usando os óculos.

Hoje eu quase acreditei em Papai Noel de tão cansada de não acreditar nas pessoas. Eu quase acreditei em Papai Noel porque existe essa tradição que diz que se eu me comportar vou achar presentes embaixo da árvore no dia vinte e cinco. E eu não ando esperando nada, sabe?

Quando eu pedi pra tirar uma foto com ele – sim, eu pedi – Papai Noel me disse que ouvisse minha criança interior e eu apenas sorri enquanto não dizia a ele que minha criança interior é muito mimada e se acha digna de receber cafuné só por estar resfriada, por exemplo. Como se as pessoas existissem para ter utilidades que supram nossas demandas – tem coisa mais capitalista que localizar demanda e suprir? Relações baseadas em necessidades. Praticamente um drive thru: Por favor, um namorado para cafuné na gripe. Um que leve o carro para o conserto. E de sobremesa um que goste de conversar comigo e sinta minha falta quando eu não der sinal de vida. E ainda me sinto autorizada a sair por aí esbravejando o quanto tudo isso é difícil de conseguir e a vida injusta. Que vergonha de mim mesma.

Difícil é querer o outro na inutilidade. Por isso eu saí e consertei o carro. Por isso eu fui ao aniversário daquela amiga entre uma tosse e outra e ainda não sarei da gripe. Por isso eu não te mandei uma mensagem falando que eu só queria o seu carinho. Pra tentar não me sarar dessa seriedade. Pra não virar transformer. É, transformer. Aquele metade robô metade carro do filme. Acho ele o cúmulo do utilitário. Ou ele tá te salvando de encrencas alienígenas ou tá simplesmente promovendo um passeio com uma gata. E aquela armadura de forte hein? Eu tenho medo de virar transformer. De ser apenas útil. E de ser tão dura a ponto de nunca mais chorar. De querer ser tão independente que acabe sendo mesmo. Por isso ontem eu pedi uma carona.

Talvez eu ande ouvindo as músicas erradas, mas eu só queria que você bebesse e me ligasse. Eu só queria que você pensasse em mim quando toca aquela música que você me mandou. Ou que me achasse suficientemente irresistível pra vir me ver e me roubar um beijo. Utilidades de novo, tá vendo? Olha pra mim, escrevendo o roteiro e querendo que você se encaixe no personagem que eu mesma criei. Não sei se é excesso de hollywood, de Disney ou de “controladorismo” da minha parte. Desculpa.

Tem coisas que não podem ser cobradas, contudo se não forem genuinamente recíprocas são apenas veneno antimonotonia. E eu preciso de uma dose de monotonia pra não ser Transformer. Eu preciso de uma dose de monotonia para enxergar que não importa quanto eu encha o meu tempo e a minha cabeça eu gosto de você, mas me disseram que você não pode suspeitar então eu sigo enchendo tudo pra não te encher o saco.


Eu não devia ter bebido tanto. Eu só queria dizer boas festas. Pode esquecer todo o resto.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

"Hoje eu tô terrível"


Essa semana o cantor sertanejo Lucas Lucco fez uma declaração em seu instagram justificando sua ausência em um show ao explicar que tem se sentido triste e que está tomando remédios para dormir, se manter calmo, etc. Algumas pessoas da minha timeline compartilharam a notícia com pesar e surpresa. O que me surpreende é que mais pessoas não cheguem ao ponto que Lucas chegou. Claro que ele se encontra em um extremo já que sua agenda de trabalho envolve diversas e constantes viagens, mas será que ele está assim tão distante da realidade da maioria de nós?

Nosso zeitgest valoriza e valida dois discursos por muitas vezes incompatíveis. O capitalismo justifica nossa constante “falta de tempo”. Pense bem, quando foi a última vez que você disse que estava ocupado demais ou que estava muito corrido para justificar alguma ausência? Precisamos ser produtivos, estar ocupados nos insere no “mundo adulto” e quanto mais ocupados mais descolados nos tornamos e mais importantes e dignos de credibilidade e respeito na ótica do outro. Não estou entrando no mérito do valor subjetivo do trabalho, não estou negando a importância de seu valor constitutivo ou a necessidade de sustento. Estou apenas sinalizando que como nossa cultura valoriza um discurso do excesso se não nos mantivermos atentos podemos compra-lo e torna-lo objeto de nosso gozo, algumas vezes só mais tarde percebendo que há dor no gozar também... Ao estar excessivamente no trabalho, estamos limitadamente aonde? Se toda nossa energia é dedicada a um estímulo, o que entregamos aos outros? O que temos oferecido de tempo, entrega ou presença as outras searas de nossa vida, como família, amigos, lazer, romance? Lucas ganha rios de dinheiro, diz gostar de cantar e de atuar e sente saudade de suas avós – porque uma necessidade não pode suprir outra, porque somos complexos e desejantes de forma múltipla. Esse cara pode ter milhares de fãs gritando seu nome e ainda assim saber o quanto está sozinho. Lúcido.

Por outro lado nossa sociedade vende e compra a ideia de dar visibilidade a nossos prazeres, coisa que as redes sociais facilitaram enormemente. Quem nunca abriu a página de alguém e sentiu inveja da foto na praia, da festa ou da boa companhia? O que o relato de Lucas nos lembra é que há sempre muito mais por detrás do recorte da foto – só vemos partes, não alcançamos o todo. Ele canta sobre curtir, beber, beijar, dançar e exibir tudo isso em festas de grandes proporções enquanto nos confessa que em seu dia a dia se sente triste e não consegue dormir. Entendo que a dicotomia das letras de suas músicas em contraponto ao seu discurso no instagram nos surpreenda, mas pensemos além: somos todos tão felizes quanto queremos crer e vender? Até quem vende essa falácia foi acometido de doses de realidade. Quem sorri na foto da praia não tem problemas no trabalho? Não é possível que estejamos na festa bebendo, mas com o pensamento lá em alguém que dói? Deve ser, afinal essa é também premissa de muitas canções sertanejas de sucesso. Nossas escolhas impõem seus preços.

Vivendo nesse contexto de excessos que nos exige produzir e consumir constantemente (não só produtos mas também momentos e pessoas) encontraremos nas prateleiras verdadeiros manuais sobre como encarar a solidão, superar a saudade, lidar com os problemas ou toda sorte de acontecimento. E todos irão falhar em suas propostas. Não há mapa para o sofrimento. Não há paradeiro para o desejo. Não existe receita para a felicidade. Tentar achar algo que fique em tempos que tudo se esvai (inclusive o cantor sertanejo de mais sucesso na rodada) pode ser um caminho, nem que seja que a gente se fique, principalmente no nosso tempo. É como desabafa o Lucas quando diz que tem um ano que não vê a avó e sabe que ela não vai estar aqui para sempre e que isso sempre martela em sua cabeça – mas somos tão empurrados pelo fluxo que muitas vezes as coisas ficam só na teoria - ou não sabemos que podemos estar economizando vida para um futuro que não nos chegará?

Algumas coisas talvez ajudem a clarear nossa mente por permitir que entremos em contato com a gente mesmo – no mais viver é dançar no escuro e tentar aproveitar a música ainda assim. Não tem jeito, tem dias que a gente tá terrível mesmo, Lucas.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Os contos proibidos do Marquês de Sade


Arnaldo Antunes e Marisa Monte começam a canção "Paradeiro" com a seguinte pergunta: “Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de nós?”. Assistindo “Os contos proibidos do Marquês de Sade”, de Philip Kaufman, foi impossível não ficar com essa frase na cabeça quase que o tempo todo. O marquês se mostrava uma bomba de desejo prestes a explodir a qualquer momento: onde aquele desejo iria parar? Haveria paradeiro, ou sentido, dentro ou fora dele? O filme é um tratado sobre ética, poder e obsessões.

Em primeira vista o Marquês se apresenta como alguém que tinha um objeto fixo de desejo: o sexo e todos os seus desdobramentos, todas as suas possibilidades, toda a sua oferta de gozos possíveis e intermináveis sem nenhuma culpa moralizante ou moralista, muito pelo contrário, quanto mais perversa (perversão: saber que existe uma regra que se aplica a todos e julgar que a você ela não é aplicável – observem a crise política atual, será que não estamos em um recorte social perverso?) fosse a proposta, maior era a recompensa do gozo – gozando duplamente, primeiro no ato de infringir os costumes já estabelecidos e depois no gozo em si, na descrição sexual que ele constrói em forma de narrativa a partir de se discurso de escritor.

O marquês se apresentou como um hedonista: cego em seu próprio desejo de prazer, só lhe interessava o que pudesse lhe oferecer satisfação e a sua vida girava em torno da busca pelo gozo e assim sendo, as necessidades do outro ficavam sempre inacessíveis para ele, com sua apatia pela empatia. Em primeira instância o Marquês parecia ser somente um compulsivo sexual que gostava de exibir sua criatividade para a perversão, chocando ao ignorar os princípios regentes e fazendo sucesso entre os leitores por servir de espelho para a perversão reprimida de cada um, num acordo de transferências digno de análise ou, sendo o portador do sintoma de uma sociedade histérica. “Haverá paraíso sem perder o juízo?”, prossegue perguntando Arnaldo Antunes em minha mente.

Contudo depois de algumas peripécias inconsequentes nas quais o Marquês pretende afrontar diretamente o alienista do manicômio - que embora já seja um senhor de idade, casa-se com uma jovem de dezesseis anos até então criada por freiras – seu maior objetivo é mostrar que por trás da “roupa moralista” que os homens usam socialmente – inclusive os que se auto intitulam bons homens - eles estão tão sujeitos (enquanto a-sujeitados) a seus desejos e perversões sexuais, quanto o próprio Marquês, que se difere apenas pela coragem de assumir e se tornar porta voz do seu desejo. Como punição pelo afronte o Marquês tem todas as suas penas, tintas e folhas de papel tomadas pelo abade que toma conta do manicômio. O que se sucede é um desdobramento interessante para a história. Ele então começa a sofrer bastante com a ausência da possibilidade de escrever e entra numa violenta “crise de abstinência”. A partir daqui, ele se transforma e nosso olhar sobre ele, para não se banalizar, precisa se transformar também senão ficaremos presos no raso da “primeira impressão” pois há sempre algo que escapa e nunca captamos, mas há também sempre camadas que são desveladas com o aprofundar do nosso olhar e conhecimento da causa.

Sade vai fazer de tudo para que não calem a sua pena (voz, discurso): escrever com vinho, num lençol branco e até mesmo escrever com sangue numa parede branca quando nada mais de sua dignidade sobrar. O Marquês vai abrir mão de tudo: luxos, dignidade, uma vida indolor e até mesmo da própria vida, lutando pelo direito de viver seus desejos – o único jeito de vida possível para ele. Dizem que quem escreve deseja tornar-se imortal (como os escritores da Academia Brasileira de Letras, por exemplo, que ao receberem uma cadeira, tornam-se “imortais”), assim como dizem psicanaliticamente que o gozo sexual é uma forma de manter-se vivo em resposta a pulsão de morte, além de serem a possibilidade de geração de filhos que são a nossa continuidade no mundo, nossa possibilidade de imortalidade. Me pergunto: o que ele queria era uma vida notória ou uma vida imortal? Ambas?

“Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de um vício?” Sade provavelmente responderia não a essa questão, tal qual Cazuza. Os dois passaram a vida correndo contra o tempo para exaurir a maior quantidade de prazer possível antes que a fonte secasse, os dois preferiam viver poucos anos a mil do que mil anos do que eles julgavam pouco. E muito ainda era pouco para eles. Foram levados pela vida que levaram. Mas qual é exatamente o objeto de gozo do Marquês: o sexo, a infração ou a escrita? Penso numa tríade impossível de ser dissociada, alimentando-se de forma complementar – talvez se vivo nos nossos tempos em que tudo é permitido e inclusive estimulado, ele fosse mais um que chegasse ao psicólogo pois não consegue gozar.

O mesmo homem que por uns era visto como compulsivo sexual, era visto por outros como um infrator da moral e por outros ainda como um escritor apaixonado. Certamente havia ainda mais homens dentro desse homem, certamente se ele não tivesse vivido em tempos repressores e tempos em que a loucura era tratada com choques, pancadas e “afogadinhas” pudéssemos construir outro perfil dele, perceber outras facetas por detrás dos vícios (já nos lembra Lacan, retomando a psicanálise “você É o seu sintoma”). Fato é que, ele foi até o seu fim regido pelo seu desejo (constitutivo) de engolir o mundo num gole sem fim ou de nunca conhecer o dissabor de pisar no pedal do freio durante a corrida. Morreu desejando a vida. Morreu desejando. Foi sujeito de suas escolhas e pagou o preço cobrado por elas. Quantos de nós podemos dizer que fazemos isso?

“Haverá paraíso sem morrer?”



domingo, 6 de dezembro de 2015

Crush way of life (Ou sobre padres e covardias)


Aderi rapidamente a moda de “crushar”. Escolhi o padre Fábio de Melo para ser meu muso inspirador afinal ele preenchia as cotas como poucos: fala e escreve bem, é divertidíssimo (de um jeito muitas vezes bobo, que só quem sabe rir de si mesmo se atreve a ser), sensível e ainda é barbudo. Acho que totalmente sem querer ao escolher meu crush eu captei a essência do conceito: é feito para nunca se realizar exceto em nossas mentes.

Quando eu tinha quatorze anos havia no colégio esse menino que era popular e cujos cabelos caíam nos olhos obrigando-o a charmosamente assopra-los para longe. Nunca tivemos nada, pois com os meninos populares meu papo e meu humor não surtiam efeito algum – adolescentes que éramos só interessavam as meninas mais bonitas e tão populares quanto eles. Eu andava por aí pensando em como seria se ele fosse meu namoradinho, imaginando cenas em que a gente efetivamente ficava junto e trocava beijos ou palavras românticas.

Seria o crush então o novo amor platônico com um nome mais moderninho? Não sei. Eu sempre tentei trazer meus amores platônicos para a vida real (e em alguns casos efetivamente consegui) enquanto que a maior parte das postagens de crush me dá a ideia de que não precisa se concretizar – tipo eu e o meu Padre Fábio.

Posso estar fazendo uma leitura errônea do fenômeno, mas essa apatia de tornar real me faz questionar: se aquela pessoa é tão incrível porque é melhor nos relacionarmos apenas em nossas mentes? Fácil! Em minha mente eu controlo nossas interações, seu senso de humor, suas reações e as coisas que você faz e diz! Na vida real você seria uma pessoa concreta com seus próprios sentimentos, momentos de chatice, cobranças, exigências, defeitos, que me faria negociar constantemente entre meus desejos tão discrepantes de liberdade e de amor. Em um relacionamento de verdade teríamos brigas, eu faria concessões, eu vivencia momentos de lágrimas, dúvidas e também de raiva. Pra uma geração tão egoísta quanto a nossa, relacionamentos inventados parecem ser a resposta ideal – preenchem o ímpeto de querer alguém sem no desviar do caminho de nossas rotinas apressadas e preenchidas de urgências e prioridades das quais não podemos (será?) nos desviar e ainda podemos bradar que estamos sozinhos não por falta de disponibilidade nossa mas sim de interesse da parte de quem crushamos.

Com vinte e sete anos e recém-solteira eu esperava mais maturidade e disposição das pessoas da minha idade, mas de maneira geral achei colherinhas tão rasas quanto as de chá, com toda sorte de organização e pretensão de controle sobre os fenômenos da existência. Talvez por isso eu tenha promovido o padre a ser meu crush, permitindo que eu me inserisse duplamente na lógica da minha geração: me afastando das chances de me relacionar com pessoas de verdade e suas consequências e me possibilitando ter controle sobre as minhas emoções e seus impactos no meu cotidiano de maneira escancarada.

No fim é como diz o personagem de Hemingway no filme “Meia noite em Paris” de Woody Allen, numa tradução livre: “toda covardia vem de não amar ou não amar bem, que são no fundo a mesma coisa”. Talvez o crush seja o refúgio da humanidade da qual não conseguimos nos desvencilhar que encontramos para a covardia relacional que impera em nosso tempo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Sobre a mulher que você vai perder ou que já perdeu


Caro amigo,

Você não vai mais a ouvir reclamar da lâmpada que você ainda não trocou. Também não vai chegar em casa e achar a lâmpada trocada por quem cansou de pedir e esperar. Ela não vai mais se queixar da roupa que você escolheu ou te olhar torto quando você dirigir de forma imprudente. Você vai poder beber a quantidade que quiser sem precisar prestar conta, organizar seu intercâmbio tão desejado, se dedicar ao seu trabalho, passar o final de semana no videogame, no baba ou no churrasco dos amigos sem precisar dividir seu tempo. Não vai mais precisar explicar quem é aquela loira gostosa na festa de aniversário do colega de trabalho, aturar o quanto ela reclama quando está na tpm, gastar dinheiro com presentes ou doces para ela ou explicar que hoje você não está com vontade de sair, viajar ou transar porque está muito cansado. Nada de queixas sobre você estar muito ocupado ou distante. Parece bom, né?

Talvez no meio do alívio das liberdades você se lembre daqueles olhos vivos, brilhantes, que sempre tiveram a ousadia de olhar no fundo dos seus antes de te desafiar ou sacanear. Quem sabe aquele sorriso de canto de boca de quando ela tem plena consciência de que foi maliciosa e que você achava um charme comece a fazer falta em algumas situações cotidianas. É possível que você sinta falta de sentir ciúme dos olhares masculinos vidrados no decote dela – e enfim se lembre de que era um decote mesmo irresistível e de quantas vezes você mesmo se viu com o pensamento perdido ali. Eventualmente você vai sentir falta daquele beijo arrebatador, suave e lascivo, com o qual ela te provocava.

Depois, quando você voltar ao mundo da caça, pode ser que sinta uma baita falta da simplicidade dela – de como ela sabia conversar sobre qualquer assunto, de como sentava de shortinho no chão, de como ela sabia rir – de você, dela mesma, das mazelas da vida – e de como era charmosa sendo irônica ou falando palavrão. Provavelmente é aqui, ao se deparar com outras mulheres, que você vai sentir falta do jeito que ela te apoiava nas suas empreitadas, da forma como ela sempre te escutava ou raramente te pressionava, da independência com a qual ela tocava a própria vida.

Certamente você vai descobrir que uma mulher cuja prioridade não seja o carro que você tem ou quanto dinheiro você tem na conta, que possua disponibilidade para acompanhar seus pais ao médico quando você não pode, que fique ao seu lado quando você está doente ou que não queira controlar seus passos, é item raro nesse universo de encontros rasos, pessoas voltadas para a satisfação das necessidades do próprio umbigo, assuntos triviais, jogos indiretos e medo de ser tocado.

Mulheres como ela são raras e por isso costumam ser disputadas - acredite em mim, sempre tem alguém que já percebeu o quanto ela é especial. Mais dia menos dia você vai vê-la de mãos dadas com outro cara, tão charmosa e sorridente quanto sempre. E talvez você se lembre dos versos de “O sol acima do sol” do Skank: “Tão fácil perceber / Que a sorte escolheu você / E você cego, nem nota / (...) / Você gastou sua cota.”

Pense sobre isso - se você der a sorte de achar outra dessas mulheres, quem sabe não já aprendeu a sorrir de volta antes de gastar sua cota?!

Com carinho,

Juliana

04/12/2015

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Precisamos falar (bem) dos nossos exs.


No café filosófico denominado “Adeus as ilusões (está na íntegra no youtube) Renato Janine nos explica as razões da paixão estar fadada ao fracasso depois de um tempo: no ocidente entramos em relacionamentos movidos pela paixão que estamos sentindo, a flor da pele, com o sentimento em uma calibragem de cem por cento – coisa que não pode se manter por muito tempo mas que vai orientar as direções de nossos afetos e a maneira como lidaremos com eles daqui pra frente. Se depois de um ano ou dois meu afeto e satisfação dentro da relação estiver em cinquenta por cento, provavelmente estarei frustradíssima com essa diminuição que se sucedeu sendo possível que eu vá embora atrás de viver aquelas sensações novamente (em oposição a cultura oriental na qual muitas relações são arranjadas e por isso iniciam-se com 0% de investimento, vindo qualquer crescimento posterior a medida que o outro se desvela a ser lucro dentro da parceria).

Quando estamos no modo cem por cento é fácil acordar cedo para levar o outro no trabalho, dormir tarde para assistir aquele filme que nem nos interessa tanto assim, tomar uma cerveja em plena terça-feira, desmarcar com os amigos ou gastar, feliz da vida, um baita dinheiro em um presente para o amado. Entrar na vida do outro é lindo. É tudo descoberta, tudo nele parece agradável, quer se ser especial, quer se fazer diferença, toda a sede do deserto quer sorver o gole de uma vez só. Ser o estrangeiro que chega é fácil. Ser o mistério sensual que nos sorri, nos convida e nos manda uma mensagem no meio da tarde dizendo “saudade” é easy mode, café pequeno, comum. Mas como é que você se saí nas despedidas ? Mas quando essa porcentagem se diminui ou esgota – o que fica? Será que a toa que o estereótipo é que ex-namorados só falam mal uns dos outros?

Talvez eu tenha sorte, talvez eu tenha feito por onde, talvez eu tenha um dedo bom para escolher os homens que deixo me acompanharem ao longo da caminhada. Meu último namorado foi uma das pessoas que mais me deu força para começar esse blog, me enchendo e empurrando de elogios até eu criar coragem e me aturando tirar mil dúvidas de ordem técnica – e já tínhamos terminado o namoro. Meu penúltimo namorado lendo um dos textos sobre como as pessoas estão loucas e se perdendo por pouco me mandou uma mensagem linda dizendo que esperava que eu continuasse sabendo ver sutilezas e extrair coisas boas da vida em um nível não superficial, que eu continuasse não me deslumbrando com as superficialidades e que não seria desafiante para mim me manter fiel ao que eu gosto. Imagina, você tá no ápice da desilusão com os rumos do mundo e da humanidade e uma pessoa que te conhece tão bem (todos os seus defeitos inclusos, após 900 dias de convivência intensa) tem palavras tão bonitas e carinhosas para te dizer?

Em sua canção “Caminhos do coração” Gonzaguinha diz “E aprendi que se depende sempre/ De tanta, muita, diferente gente /Toda pessoa sempre é as marcas /Das lições diárias de outras tantas pessoas”. Então sim, provavelmente a ex do seu namorado, da qual você morre de ciúme foi muito importante para ele aprender várias coisas. Talvez a ouvir. Talvez a falar. Talvez a pedir desculpas. E sim, algo dela vai ficar no repertório dele. Como eu não vou esquecer que dei meu primeiro beijo num halloween do curso de inglês, de como enfim conheci o menino mais bonito do terceiro ano num chat de msn via amiga em comum, de receber cartas com desenhos de gérberas, de transformar o melhor amigo de anos em namorado, de ser cara de pau tomar a iniciativa de chamar alguém pra tomar um picolé ou de demorar cinco encontros pra aceitar receber um beijo. Que a memória perpetue tudo que for a gente deixando as pessoas nos estimularem a ser o melhor que pudermos ser (e que as brigas prescrevam, como crimes antigos que de fato são) – o namorado que estimulou a minha independência, o que me fazia procurar escrever as coisas mais bonitas, o que dizia que admirava o jeito especial com que eu tratava as pessoas, o que me fez encarar a dureza da vida e ver o quanto eu podia ser forte, o que pediu que eu abaixasse os muros para que ele pudesse chegar perto de mim.

“E é tão bonito quando a gente entende /Que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá /E é tão bonito quando a gente sente / Que nunca está sozinho por mais que pense estar” E eu entendo, Gonzaguinha. E agradeço.

sábado, 21 de novembro de 2015

Você, você


Já deviam ser umas duas da manhã e eu estava completamente corcunda, debruçada com os cotovelos apoiados na mesinha perto do palco a fim de equilibrar o peso que meus pés não aguentavam mais carregar depois de tanto dançar. Você encostou em mim tão sutil que eu nem percebi e me perguntou: por que você não está dançando? Eu fui sincera: é impossível dançar com esses sapatos. – E por que você não tira? – Elas (apontei para as minhas amigas) disseram que mulher sem sapato na balada é o equivalente a homem sem camisa. Você gargalhou gostoso e disse que não se importava nem um pouco se eu tirasse os sapatos – mesmo você tendo uns quase dois metros de altura. E ficou ali no meio da música falando comigo sobre fazer terapia, a difícil situação do Bahia, o engarrafamento da cidade. E disse que eu era muito antipática de nem ficar reta para conversar com você, mas não foi embora! Encostou os seus cotovelos na mesinha e ficou ainda mais corcunda do que eu.

Muito depois você perguntou a minha idade e ficou muito vermelho quando eu disse ter vinte e sete. “Não parece de jeito nenhum!!!”. Eu ri muito de você ser tão novo e ter chegado em mim achando que eu também era – ri satisfeita me sentindo alguns anos mais nova. Você ficou ali gastando assunto até eu ir embora – sem tentar nada comigo - e quando eu cheguei no carro já tinha uma mensagem no meu whatsapp me perguntando como eu podia ser ainda mais bonita de óculos.

Em outro momento eu tive a chance de te perguntar o que levava uma pessoa sóbria a ir paquerar a pessoa mais desanimada da balada e você me disse que era um misto de desafio com a sensação de que eu era diferente – que você confirmou depois quando teve seu primeiro papo de futebol com uma garota em uma festa ou quando teve o seu papo mais comprido sem ficar com a garota em questão. E eu pude te confidenciar que naquele dia eu estava zero disponível, mas você foi tão suave e disposto a conversar ( e eu já gosto de um pé de prosa) que não te mandei embora. Parecia que você me conhecia de alguma forma.

Você pôde descobrir que eu não era corcunda e que parecia ainda mais nova com cara de “cotidiano”. E pôde rir de todas as minhas piadas ruins que eu achava muito boas e de quando eu chorei no cinema ou te obriguei a escutar o cd de Fábio Jr. E começou a dormir menos para ter mais tempo de fazermos alguma coisa juntos. E brigou feio comigo todas as vezes que me achava “racional demais” e eu achava que você nunca mais ia aparecer e lá vinha você de volta sendo um jovem muito mais corajoso, maduro e disponível do que eu esperava e você ria e dizia que não tinha condições, eu tinha um sorriso bonito demais, era impossível lutar contra isso e que bom, o beijo também não era nada mal e o mundo andava difícil lá fora. E começavam mil discussões de relação. E pedidos de desculpa. E pedidos de “fica”. E eu só podia te abraçar por ficar – por reconhecer que ficar era difícil ás vezes, mas que era o que você queria e o que eu queria também e isso era mais importante do que tudo. E quando eu tinha um dia ruim você sempre tinha uma massagem boa. E eu adorei todas as vezes que você disse que eu era foda – ou como elogio ou porque eu te deixava louco.

Um dia você confessou o ciúmes que sentia de eu escrever tanto e não escrever nada pra você. Pra você, não sei. Mas sobre você? Tem gente que faz a gente sentir que devolveram um tempo que nos tinha sido roubado. Tem gente que nos rouba e gente que nos devolve. Você é dessas gentes, você.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A falácia da leveza


Quando eu vi essa foto no facebook da página "Omi no tinder" comentei que tenho pavor desse papo de "seja leve" por pra mim o termo ter sido banalizado e deturpado, sendo usado por muitos (várias vezes provavelmente sem a análise crítica por detrás do que está sendo dito!) como a tradução de "não me incomode com a sua vida". Meu comentário teve 16 likes, o que me fez pensar e me levou a escrever sobre a existência de um fenômeno que tomei a liberdade de chamar de "a falácia da leveza".

Falácia é qualquer enunciado ou raciocínio que embora falso pareça verdadeiro. Ao escutar "seja leve" você pode subentender que existe a expectativa de que vocês passem momentos agradáveis juntos, que seja divertido, que não haja cobranças ou pressões mas espere, isso é possível? Alguém pode ser leve? É viável (e até saudável) que, como nos propõe o jovem rapaz do tinder, deixemos nossas bagagens passadas para trás? Leveza é calar tudo que sentimos que possa ser interpretado como "pesado"?

A liquidez da nossa sociedade legalizou a babaquice também no âmbito afetivo. É natural que uma pessoa se aproxime da outra com a demanda de "vamos trocar todos os fluídos corporais possíveis, usufruir das nossas liberdades mas não vamos nos envolver". Já nos introduzimos as pessoas limitando o espaço da relação, contendo os fluxos. Os sentimentos estão tão a margem na nossa sociedade de consumo que nossos encontros ficaram empobrecidos e superficiais. A sociedade do espetáculo só autoriza a felicidade então que seja leve ou que não seja pois na lógica do capital tudo é produto e todo produto foi feito para consumo e descarte para criação de nova demanda de consumo. Para nos incluirmos na lógica vigente nos desumanizamos. Abdicamos da possibilidade de sermos marcados ou tocados pelas pessoas e suas experiências. O pavor da proximidade aniquilou nossa capacidade de, de fato, entrar em contato.

Naturalizamos o processo e nos adaptamos a viver conforme a regra sutil do não-envolvimento e repetimos o discurso do "segredo para manter a pessoa interessada" que consiste em coisas como "não demonstrar interesse", "não falar do que sente", "dê um gelo". Misturamos perigosamente os conceitos de interesse e desinteresse. Estamos todos presos na teia da aranha mas de maneira geral os homens consomem e compram mais esse discurso, talvez por ser facilmente atrelado a conceitos como "macho alfa" ou "pegador", construções sociais vendidas a eles em nossa cultura. Quando as feministas lutaram por uma revolução sexual para a mulher não imagino que o que elas esperavam é que se tornasse inadequado questionar como mesclamos tanta intimidade sexual com tão pouco acesso ao mundo interno do outro, seus planos, sonhos, vivências ou que fosse mantida a hierarquia social de gênero que continua assujeitando a ordem dos nossos sentimentos - continuam não tendo o direito de existirem.

A fragilidade inerente ao humano foi alçada a sintoma de vinculação. Demonstrar carinho virou sinônimo de ameaça a individualidade. Expressar insatisfação frente algo que foi dito ou feito virou subversão - se a gente se pega sem envolvimento que anarquia é essa de querer vir cobrar alguma coisa? Cobranças são diametralmente opostas a leveza. Vivemos os "tempos modernos" do amor, repetindo os mesmos movimentos na esteira de material, ganhando o "pão de cada dia" (ou a companhia ou afago - será?) na lógica do mercado e a cada encontro descartando nossa subjetividade emocional, operacionalizando nossas habilidades afetivas, esvaziando nosso repertório relacional para nos adaptarmos a rotina de apertar parafusos sem nunca construir nada efetivamente. Engrenagens que rodam sem sair do lugar.

Não me surpreendo que tenhamos desaprendido a conviver com os diferentes. Que haja tanta intolerância e violência. Que exista tanto desinteresse pelo que não é nosso umbigo e que quando o interesse se instale tentem decretar que tipo de tragédia temos o direito de chorar.

Talvez tenhamos lido revistas de dieta demais e tenhamos confundido leveza com vazio. Que pena.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Agulha no palheiro


Culpada, confesso: eu escuto conversa alheia. E hoje estava tomando um suco enquanto ouvia um grupo de garotos e garotas conversar. Fulano tinha terminado o namoro e tinha se arrependido pois tinha percebido que sua ex era uma menina especial. Opa,"especial". Sempre que escuto essa palavra penso se existe alguém ser especial ou se alguém está especial para nós.

Veja, se o "especialismo" atribuído a pessoa for fruto de nossos olhos desejantes a pessoa só pode estar especial e só estará enquanto nosso olhar aí a enquadrar, só conseguiremos enxergar essa característica dependendo de variáveis nossas, como por exemplo quando estamos apaixonados ou admiramos muito alguém. Talvez, misturando os dois conceitos de ser e estar especial, nossos olhos coloquem prazo de validade na interessância quando encontramos a dualidade, o outro lado da pessoa, o que nos agride, morde, assusta, afasta. É uma dicotomia como a da vida-morte, indissolúvel a da curiosidade-preguiça de conhecer pessoas, gostar de pessoas, se decepcionar com pessoas, começar tudo de novo. Só que eu sou uma romântica e gosto de olhar pedra e ver poesia (embora, como Adélia Prado, tenha meus dias em que Deus me rouba a poesia e ao olhar pedra eu só veja pedra mesmo) então gosto da ideia de pessoas serem especiais por si só, pelas características que possuem e as diferenciam das demais e as tornam capazes de despertar sensações incríveis em nós. A sensação de achar alguém "especial" e conviver com essa pessoa é das mais entusiasmantes que existem e se não usarmos dois pesos e duas medidas vamos deixar as pessoas especiais partirem da nossa vida - sejam amigos ou romances - apenas por serem, bem, pessoas, falíveis, assim como nós.

Os contos de fadas e lendas folclóricas usam muito dos rituais simbólicos para descobrir se alguém é especial. Tem a história da princesa que dorme em cima de vários colchões e mesmo assim sente a pequena agulha embaixo deles. Tem a história da Bela Adormecida que só pode ser acordada pelo beijo de amor verdadeiro. Etc e tal. Mas nós temos ritualizado cada vez menos e tal qual Rubem Alves pensava talvez isso faça falta aos nossos processos simbólicos de autoconhecimento e de conhecimento do outro e da vida.

Se eu tivesse tido a chance de dizer algo a fulano eu cantaria um pouco de Gal Costa: é preciso estar atento e forte. Óbvio que o que torna as pessoas especiais é idiossincrático e o que eu acho lindo talvez seja só comum para outra pessoa mas ainda assim eu arrisco meus palpites. Se a pessoa - sejam essas pessoas sentadas na mesa com você, os seus amigos, seja a sua fulana perdida ou a próxima que você encontrar - consegue te fazer sorrir até quando a situação é trágica ou até de você mesmo, se até engarrafamento melhora na companhia dela, se o senso de humor de vocês faz par, se você se sente a vontade para falar de coisas pessoais se sentindo ouvido, se aprende coisas novas com ela, se você sente que a pessoa tem preocupação real com a sua vida e faz o que pode para melhorar os seus dias, daquele jeito tão pessoal que é só dela... Abra os olhos. Pisque os olhos. Esfregue os olhos. Tire esse cisco daí. Coloque óculos. Pingue colírio. Pegue a lupa. Não deixe que seja lá o quê que embaçou sua vista e fez com que você se afastasse desse amigo ou dessa paquera cegue você. Se a sua fulana tem o sorriso mais doce que você já viu, parece que te desmonta por dentro quando te olha nos olhos e o beijo parece que foi encomendado: abra os olhos. Não te conheço Fulano. Não sei as razões do fim. Se for algo muito grave, guarde essas dicas para detectar a próxima pessoa especial que cruzar seu caminho. Se for algo mais suave, abra os olhos e vá lá fora.

É muita palha pra pouca agulha. Como diz Arnaldo Antunes: "tem muito pouca dúvida e muita razão/ tem muito pouca ideia e muita opinião/ muita pornografia e muito pouco tesão / muita cerimônia e muito pouca educação / muito pouca gente e muita multidão."
Talvez você precise disso, de uma overdose de palha de verdade, pra perceber que quem aos seus olhos já tinha virado palha ainda é agulha (e não esqueça mais que agulhas, como pessoas, também podem nos ferir as vezes).

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Por que eu saí do Tinder (ou sobre toques e encontros)



Deslizei o dedo para a esquerda e logo apareceu um x em cima da colega mala do trabalho. Cliquei no X e ela sumiu, como mágica. Não precisei passar mais nenhum segundo ouvindo a bronca que ela estava me dando sobre a forma que eu tratava as pessoas. Saí da sala e fui no outro setor. Alguém falou que meu cabelo novo estava lindo e eu arrastei a pessoa para a direita, colocando um coraçãozinho nela afinal quem não gosta de elogio né? Começamos a conversar mas enquanto isso um outro colega apareceu falando da viagem incrível que ele tinha feito e eu arrastei ele pra direita também porque eu adoro história de viagem. A menina nova chegou e ela está linda hoje, claro que coloquei coraçãozinho e arrastei pra a direita porque adoro estampa de coruja. Falei da colega mala e todos eles acharam que ela tinha sido injusta menos a menina do vestido de coruja, bloqueei ela né, que eu não sou obrigada a aceitar conviver com gente que vê o mundo dessa forma. Foi ótimo, ela sumiu na mesma hora. Depois a moça que elogiou meu óculos começou a reclamar que estava com dor de cabeça e eu tive que bloquear ela também. Gente, será que as pessoas só sabem reclamar? E o cara que viajou? Por enquanto ele tá aqui mas eu já soube que o rapaz do outro setor sabe contar melhor esses causos de viagem e a gente tem mais interesses em comum, se bem que ele não é tão bonito assim...

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Acordei sozinha na cama com a sensação de ressaca e um certo formigamento no peito. Parecia que eu tinha acabado de fazer mercado e estava exausta de ler rótulos que eu não compreendia mas que eu seguia escolhendo mesmo assim, apostando que sem conservantes fosse melhor ou que “com suco de cinco laranjas” fosse me dar mais vitamina c. Eu já tinha saído do tinder mas e se o tinder não tivesse saído de mim? Nietzsche disse que quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha pra você. Claro que eu não ia poder arrastar meus colegas de trabalho na vida real mas e se eu tivesse aprendido a arrastar as pessoas simbolicamente? E as pessoas que eu tinha arrastado na vida virtual, que muitas vezes é mais real do que a dita vida real, protocolada, burocrática, enfadonha? (Hoje em dia ainda existe essa dicotomia real x virtual? Acredito que não...)

O tinder parecia bom pra mim. Uma boa possibilidade de conhecer pessoas novas – coisa difícil pra uma pessoa que embora sociável frequenta lugares pouco interativos como cafés, teatro e cinema. Vindo de dois namoros praticamente emendados já se iam uns quatro anos dividindo a vida e todos os seus pormenores mais gostosos e também mais difíceis com alguém, sem precisar me preocupar em ser o produto do rótulo mais interessante da prateleira infinita, sem precisar me preocupar com os mil jogos de disfarce de interesse – na verdade, achar companhia nunca tinha sido um problema pra mim e eu achava que estava só mudando a via de busca de alguém para rir, conversar e passear ao entrar no tinder. Como eu estava enganada.

Olhei pela janela e vi aquele tanto de estrelas no céu. Pensei em tantos que éramos naquele aplicativo, procurando alguém. Porque sim, se você está ali você está procurando alguém para algo – pode ser transar, ter um paquera, namorar, achar o amor da sua vida, ter com quem ir ao cinema, tanto faz. Só que a usabilidade do tinder dá a mesma ideia que eu tinha ao olhar as prateleiras do mercado e ter que decidir sobre os rótulos ou que um casal tem ao ir procurar apartamento: mas e se eu fechar esse apartamento e o próximo que eu for olhar for mais incrível? O tinder sempre te dá um próximo. O tinder pode te dar vários ao mesmo tempo. O tinder te oferece mil casinhas com jardins verdes, mil telinhas brancas a serem coloridas, afinal como diz Millôr “como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem.” e ninguém nunca conhece bem um paquera podendo ele ser como o camaleão, camuflado da cor de fundo que quisermos, caixa da qual pode sair toda sorte de surpresa e sob a qual sempre repousamos nossa melhor expectativa. Encerrar uma paquera costuma ser mais difícil do que encerrar um namoro porque significa encerrar a fantasia, a promessa de vida que viria. Tanta gente querendo encontrar alguém... Como é que ninguém se encontrava? Que eu chegava na faculdade e ouvia as pessoas falando da falta de pessoas interessantes? Que eu chegava no trabalho e escutava que as pessoas não estavam disponíveis? Que as minhas amigas falavam que não sabiam aonde encontrar pessoas?

Segundo o dicionário Michaelis encontro pode significar “1 Ato de encontrar ou encontrar-se. 2 Choque, embate, encontrão, colisão. 3 Briga, recontro, duelo. 4 Esp Jogo entre duas equipes. 5 Reunião de pessoas ou coisas. 6 Ponto em que uma pessoa se encontra com outra.” Eu queria encontrar e estava disposta a todas as consequências oriundas de um verdadeiro encontro (bom, tenho vinte e sete anos, já deu pra desfantasiar sobre o que são duas visões de mundo entrando em contato): dúvida, medo, alegria, ansiedade, descobertas, discordâncias, chateações, surpresas. E muita, muita curiosidade, que sou naturalmente uma interessada em ouvir o que as pessoas pensam.

Só que o tinder se mostrou não um aplicativo de encontros e sim de esbarrões (”1 Tocar de leve em. vti e vpr 2 Ir de encontro a, chocar-se com. vint 3 Deter-se: Os animais esbarraram assustados. vti evint 4 Deter-se diante de uma dificuldade: Esbarrar num impasse. Trabalhava com zelo, porém esbarrava às vezes. vint 5 Parar de fazer algo, em sentido amplo.”) Adoro essa definição do “tocar de leve” porque é a cara da contemporaneidade. É a cara da geração que compra o livro “não se apega não”, é a cara de quem já conhece alguém dizendo que não quer se envolver, é a cara das conversas que toda minha vida ouvi uma mulher dizer a outra “não mostre interesse demais que isso assusta”, é a cara de quem quer que tudo seja suave, é a cara do tinder! É o grito do “não vamos até o ponto que uma pessoa se encontra com a outra, vamos apenas nos tocar de leve”. Tocar de leve combina até com o capitalismo porque você pode continuar produtivo, útil, focado já que seus conteúdos mobilizadores estão resguardados pois quem toca de leve não vai conversar sobre como se sente inferior quando a mãe fala do irmão mais velho ou sobre como se sentiu ao perder o avô.

Descobri assim que na verdade ninguém quer encontrar ninguém e por isso ninguém se encontra – onde nos conhecemos mais ou melhor do quando nos vemos em relação a alguém? Todo mundo só quer se tocar de leve, dar uns beijos, não esquentar a cabeça e não correr o risco de precisar desviar a rota da própria vida que vai sempre mais segura e desenhada quando vamos sozinhos. Descobri assim que o tinder era a prova irrefutável do discurso da liquidez de Bauman. Descobri que eu era old school porque até pra dar uns beijos eu queria saber se sei lá, tava tudo certo no trabalho da pessoa ou se ela tinha tido um dia difícil. Descobri que eu tinha virado um ponto fora da curva achando que esbarrar deixava muito mais marcas doloridas do que se encontrar. Saí do tinder, com medo de que ele e sua visão superficial se entranhassem em mim. Com medo de que eu começasse a arrastar pessoas para os lados porque elas despertaram em mim sentimentos. Com medo de que “tocar de leve” tocasse o meu jeito de ser. Eu saí do tinder para continuar com o Vinícius de Moraes, achando que "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida..."

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Desperdícios

Terminamos a refeição e deixamos um restinho no cantinho do prato a ser descartado em nosso lixo diário. Será que não sabemos a quantidade de pessoas em nosso país que passa fome? Será que não sabemos que com tantos temporais e secas as plantações correm riscos e podemos ficar sem acesso a algum tipo específico de alimento? A pia da cozinha está pingando e ninguém se dispôs a consertar, sempre deixando para amanhã. Esquecemos, novamente, de desligar a torneira enquanto escovamos o dente. Ignoramos a crise hídrica, o nível alarmante dos nossos reservatórios?

Não. Somos bem informados, consumidores de informação. Sabemos de tudo. Por que razão optamos por ignorar esses dados então? Um palpite: a autoconsciência leva a reflexão, que muitas vezes conduz a dor. Dá pra imaginar a culpa de sentar para comer pensando em quantos não tem o que comer? Dá pra imaginar a sensação de conivência ao perceber que jogamos água boa fora? Outro palpite: nos julgamos especiais, abençoados, porque justamente conosco aconteceria de faltar água ou comida? Muitas vezes precisamos nos apoiar na certeza de alguma espécie de proteção em volta de nós para não enlouquecermos diante de nossas próprias fragilidades.

Em tempos líquidos (sim, insisto nessa tecla) estamos desperdiçando também pessoas. Será que estamos tão submersos que não conseguimos mais identificar quando encontramos alguém realmente especial? Será que nossa falta de autoconsciência ou nossa sensação de proteção faz com que não nos demos conta de que enquanto “a vida sem freio nos cega, nos arrasta” corremos o risco de desperdiçar aquela pessoa? Ou será que nos consolamos pensando na hiper oferta de pessoas disponíveis, acreditando que pessoas especiais estão por aí aos montes? Será que daí advém a sabedoria popular do “só damos valor quando perdemos”?

Retomo Clarissa Pinkola Estés que terapeuta experiente, está rotineiramente voltando sua escuta para esse momento e teoriza assertivamente sobre nossos processos no encontro com o outro: “A fase de correr e se esconder é o período no qual os amantes tentam racionalizar seu medo dos ciclos de amor da vida-morte-vida. Eles dizem “posso me dar melhor com outra pessoa”, “Não quero renunciar a meu (preencha lacuna)____”, “Não quero mudar minha vida”, “Não quero encarar minhas feridas nem as de ninguém mais”, “Ainda não estou pronto “ ou ainda “Não quero ser transformado sem primeiro saber nos ínfimos detalhes como vou ficar/me sentir depois” (...) Há quem cometa o erro de pensar que está fugindo do relacionamento com o parceiro. Não, não está. Não está fugindo do amor ou das pressões do relacionamento. Está tentando correr mais rápido do que a misteriosa força da vida-morte-vida. A psicologia diagnostica essa situação como “medo da intimidade, medo do envolvimento”. No entanto, esses são apenas sintomas. A questão mais profunda é de descrença e desconfiança. Aqueles que sempre temem viver de fato de acordo com os ciclos da natureza selvagem.”

O que ela desenvolve de maneira profunda é no fundo alguma novidade? Algum de nós nunca disse ou escutou que “não está preparado para um relacionamento”? Algum de nós nunca se arrependeu de ter perdido alguém? Algum de nós nunca pediu uma segunda chance? Não é possível falar de vida sem falar de morte – ainda que simbólica. O que deixamos viver e morrer nessa fuga?

Essa semana vai ter uma festa de halloween no meu curso de inglês. A coordenadora entrou na sala para nos convocar a irmos. Eu disse a ela que provavelmente não iria já que estava muito cansada. E ela me respondeu “Se você ficar esperando as condições perfeitas nunca vai fazer nada. A gente sempre fala que só vai ter filho depois que terminar o mestrado. Que só vai casar quando a crise financeira passar. Tudo isso é desperdício de vida.” Não é exatamente disso que Clarissa fala? A condição perfeita não existe. E as imperfeitas desperdiçamos em gotas na torneira ou cantinhos de prato. Inconscientemente desejosos de que amanhã haja comida de novo, que no próximo banho haja água e que quando tivermos tempo fulano ainda esteja por aí.

Irvin Yalom em seu livro “O carrasco do amor” fala sobre quando os pacientes chegam ao consultório com a sensação de que já é tarde demais, as coisas já estão perdidas. “Eles gritam por aqueles que estão perdidos para sempre – pais, cônjuges, filhos, amigos – mortos ou ausentes. “Eu quero vê-lo de novo”. “Eu quero seu amor”. “Eu quero que você se orgulhe de mim”. “Eu quero que você saiba que o amo e como me arrependo de nunca ter dito isso”. “Eu quero você de volta – eu estou tão só”. “Eu quero a infância que nunca tive”. “Eu quero ser saudável – ser jovem novamente”. “Eu quero ser amado e respeitado”. “Eu quero que minha vida tenha significado”. “Eu quero realizar alguma coisa”. “Eu quero significar, ser importante, ser lembrado”. Tanto querer. Tanta saudade. E tanta dor, tão perto da superfície, á profundidade de alguns poucos minutos. Dor do destino. Dor da existência. Dor que está sempre lá, sussurrando continuamente sob a película da vida.”

E aí, que postura vamos seguir assumindo diante da comida no prato, da água na torneira, da pessoa encantadora que aparece, do sangue que corre nas nossas veias nos lembrando que estamos vivos? Vamos pensar sobre, agradecer, valorizar, desperdiçar?

“Será que é tempo que te falta pra perceber? Será que temos esse tempo pra perder?”





Glossário de referências:

*Clarissa Pinkola Estés é é analista junguiana, doutora em estudos multiculturais e psicologia clínica. Tem alguns livros publicados no Brasil, entre eles o famoso “Mulheres que correm com lobos” (que eu recomendo insistentemente!)

*Irvin Yalom é psiquiatra e professor de psiquiatria na Universidade de Stanford. Tem vários livros publicados no Brasil entre eles o clássico “Quando Nietzsche chorou”.

domingo, 25 de outubro de 2015

Sobre a moda (e o mundo assustador) do “loucas” e “trouxas”


Eu devia ter uns dezoito ou dezenove anos. Era são joão e eu e minhas amigas tínhamos viajado para o interior atrás de um forrózinho. No dia da festa principal o avistei. Tomei um susto já que da última vez que havíamos conversado ele me disse que o plano original dele era ir pra Caruaru ou Campina Grande. Enquanto dançávamos perguntei o que ele fazia ali e ele me disse, entre lágrimas, talvez até em função da cerveja já ingerida: peguei um bate e volta de salvador porque eu precisava te dizer que estou apaixonado por você.
Um bate e volta daquele envolvia ao menos quatro horas para ir e quatro horas para voltar. Na hora fiquei gelada e tive que dizer a ele que a recíproca não era verdadeira, que podíamos conversar depois, com calma, em uma situação mais tranquila. Menina nova, talvez não tivesse entendido a grandeza daquilo tudo, talvez não soubesse lidar com o que recebia.

Fosse isso hoje em dia ele poderia postar nas redes sociais “desenrolando meu papel de trouxa”. Fosse ele uma mulher estaria sendo enquadrado na síndrome da “mulher louca” – acho que todo mundo conhece essa expressão, comumente utilizada para explicar que uma moça que não tinha compromisso com o rapaz acabou se envolvendo “demais”, passou dos ”limites” do aceitável naquela relação, provavelmente tentou “controla-lo” de alguma forma, deixou claro seu desejo de exclusividade ou expressou de alguma forma algum grau de sentimentos numa variável que vai de “gosto de você” até “te amo para sempre”.

Conversando com um amigo ele me disse que ficava com uma amiga quando eles saíam mas nunca era pré-acordado (nunca são no fundo pré-acordadas as coisas do sentimento, ora!) quando seriam apenas amigos e quando seriam ficantes. Um dia ela “ficou louca” e tentou beijá-lo, o assustando muito. Retruquei: não acho que ela tenha ficado louca! Acho que você pode não ter deixado claro qual era sua onda naquele dia e ela tentou descobrir (pode de fato não ter sido a maneira mais ajeitada de fazê-lo mas de novo: coisa de sentimento tem jeito?). Meu amigo é dessas pessoas lúcidas e reflexivas e aceitou que podia mesmo ser um ponto de vista justo. Inclusive noutro ponto da conversa ele expressou que achava justo a mulher questionar ao cara “o que aconteceu, ainda estamos ficando?” se estivesse em dúvida ou notasse que ele havia mudado, como direito dela de organizar a própria vida. Perguntar ok, tentar beijar assustador. Para outros tudo poderia ser tudo easy. Ou tudo assustador. Idiossincrasias e subjetividades a parte – ainda bem.

Olhando hoje não acho nem louco nem trouxa o rapaz do bate e volta. Acho muito corajoso, isso sim. Faço mea-culpa: pensando bem, quantas vezes pelos corredores da faculdade eu achei que ele queria me dizer algo e me esquivei, pensando que o meu silêncio era suficientemente responsivo? Não era; nunca é, logicamente – o silêncio é tela em branco onde cada um deposita a fantasia que lhe parecer conveniente. O que pra mim era simples silêncio gerou uma angústia tão grande que justificou oito horas dentro de um ônibus. Me orgulho de saber que mesmo depois desse episódio ele não abriu mão de sua coragem e continuou seguindo atrás de todo sentimento que ele julgasse valer a pena. O que posso fazer é tentar aprender com a coragem dele.

“A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” já dizia Guimarães Rosa. Coragem de correr o risco de ser louco ou trouxa. Correr o risco de se machucar. Correr o risco de começar de novo. Correr o risco de pagar pra ver. Correr o risco de assumir os sentimentos. De pedir o que se quer. Chorei muito mais pelas coragens que guardei em gavetas e não usei do que pelos riscos que assumi– esses sempre me deixaram o gosto do “fiz a minha parte”. “A vida embrulha tudo” é a frase que Guimarães usa antes de explicar como a vida é: e no seu embrulho muitas vezes falamos o que não queríamos, fazemos o que não devíamos, nos questionamos e concluímos, batemos portas e rotulamos (a nós e aos outros) de trouxas ou loucos. Incerteza é chão que deforma nossas passadas, nos transformando em quem muitas vezes não somos.

Lógico que esse não foi meu único caso de proximidade com a “loucura emocional”. Já devo ter sido “a louca” de alguém. Já tive meus “loucos”. Muita teoria absorvida depois, digo: não me assusto mais com a humanidade de ninguém, até me sinto tocada. Pensando numa era tão tecnológica que todo mundo está acessível a qualquer momento a inacessibilidade de alguém pode ser uma barreira difícil de digerir. Pensando em tempos líquidos, tempos em que o de praxe é ir embora sem despedida (eticamente: até ao ser demitido do trabalho você tem o direito a um feedback, a conhecer as razões que causaram a ruptura e se souber converter limões em limonadas pode tentar se aprimorar – nos relacionamentos de hoje, alguém faz isso, gasta tempo explicando algo? Eticamente, no trabalho você tem avaliação de período de experiência, para ter a chance de saber onde está errando e a oportunidade de melhorar), pular para o próximo passo com excessiva velocidade, com o famoso “sumiço” ou com o aplicativo que sinaliza para a pessoa que você não está mais interessado (outrora já critiquei esse aplicativo comparando-o a comprar tangerinas já separadas em gomos no mercado, hoje acho ele melhor que o sumiço, ao menos) é difícil entender as razões de cada vez mais pessoas se sentirem loucas ou trouxas quando se dispõem a ficar enquanto todo mundo parece estar correndo? Bauman diz, em seu livro “Modernidade líquida”:

““Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio Prudence, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre os corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.
A velocidade, no entanto não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar mais de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino.”

Ele possui ainda um trecho, dessa vez em “Amor líquido” em que compara o amor com a morte. Mesma lógica utilizada por Clarissa Pinkola Estes em “Mulheres que correm com lobos”: sendo o amor o que bagunça nossa experiência, quantas e quantas vezes ao nos vermos próximos de alguém esperneamos tentando fugir, nos questionando se aquela é a pessoa certa, se estamos prontos para o envolvimento, se de fato aquela pessoa cabe na nossa vida, se seria esse o momento, se gostamos tanto assim, etc? A morte não precisa ser literal e sim o processo natural da transição de ciclos e tempos inerentes as transformações de quem somos e encerrar e recomeçar em qualquer esfera tem dor de despedida. Baudrillard complementa essa lógica quando traz a noção de “sociedade do consumo” onde somos todos seres a serem consumidos e descartados como mercadoria ao preenchermos o espaço que nos foi designado – as desculpas para o não-envolvimento são muitas, as apostas no envolvimento cada vez mais raras. É fácil justificar um “adeus” e difícil receber uma “segunda chance”.

Hoje me parece loucura gostar fingindo que não gosta. Parece perda de tempo ter que fingir tanto para despertar algum interesse primário do ego da conquista. Parece superficial não perdoar. Parece medroso não falar o que se sente. Parece tolo deixar partirem pessoas interessantes pelo nosso medo de sermos interessados. Quem será que está sendo mesmo o louco/trouxa dessa história?