domingo, 25 de outubro de 2015

Sobre a moda (e o mundo assustador) do “loucas” e “trouxas”


Eu devia ter uns dezoito ou dezenove anos. Era são joão e eu e minhas amigas tínhamos viajado para o interior atrás de um forrózinho. No dia da festa principal o avistei. Tomei um susto já que da última vez que havíamos conversado ele me disse que o plano original dele era ir pra Caruaru ou Campina Grande. Enquanto dançávamos perguntei o que ele fazia ali e ele me disse, entre lágrimas, talvez até em função da cerveja já ingerida: peguei um bate e volta de salvador porque eu precisava te dizer que estou apaixonado por você.
Um bate e volta daquele envolvia ao menos quatro horas para ir e quatro horas para voltar. Na hora fiquei gelada e tive que dizer a ele que a recíproca não era verdadeira, que podíamos conversar depois, com calma, em uma situação mais tranquila. Menina nova, talvez não tivesse entendido a grandeza daquilo tudo, talvez não soubesse lidar com o que recebia.

Fosse isso hoje em dia ele poderia postar nas redes sociais “desenrolando meu papel de trouxa”. Fosse ele uma mulher estaria sendo enquadrado na síndrome da “mulher louca” – acho que todo mundo conhece essa expressão, comumente utilizada para explicar que uma moça que não tinha compromisso com o rapaz acabou se envolvendo “demais”, passou dos ”limites” do aceitável naquela relação, provavelmente tentou “controla-lo” de alguma forma, deixou claro seu desejo de exclusividade ou expressou de alguma forma algum grau de sentimentos numa variável que vai de “gosto de você” até “te amo para sempre”.

Conversando com um amigo ele me disse que ficava com uma amiga quando eles saíam mas nunca era pré-acordado (nunca são no fundo pré-acordadas as coisas do sentimento, ora!) quando seriam apenas amigos e quando seriam ficantes. Um dia ela “ficou louca” e tentou beijá-lo, o assustando muito. Retruquei: não acho que ela tenha ficado louca! Acho que você pode não ter deixado claro qual era sua onda naquele dia e ela tentou descobrir (pode de fato não ter sido a maneira mais ajeitada de fazê-lo mas de novo: coisa de sentimento tem jeito?). Meu amigo é dessas pessoas lúcidas e reflexivas e aceitou que podia mesmo ser um ponto de vista justo. Inclusive noutro ponto da conversa ele expressou que achava justo a mulher questionar ao cara “o que aconteceu, ainda estamos ficando?” se estivesse em dúvida ou notasse que ele havia mudado, como direito dela de organizar a própria vida. Perguntar ok, tentar beijar assustador. Para outros tudo poderia ser tudo easy. Ou tudo assustador. Idiossincrasias e subjetividades a parte – ainda bem.

Olhando hoje não acho nem louco nem trouxa o rapaz do bate e volta. Acho muito corajoso, isso sim. Faço mea-culpa: pensando bem, quantas vezes pelos corredores da faculdade eu achei que ele queria me dizer algo e me esquivei, pensando que o meu silêncio era suficientemente responsivo? Não era; nunca é, logicamente – o silêncio é tela em branco onde cada um deposita a fantasia que lhe parecer conveniente. O que pra mim era simples silêncio gerou uma angústia tão grande que justificou oito horas dentro de um ônibus. Me orgulho de saber que mesmo depois desse episódio ele não abriu mão de sua coragem e continuou seguindo atrás de todo sentimento que ele julgasse valer a pena. O que posso fazer é tentar aprender com a coragem dele.

“A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” já dizia Guimarães Rosa. Coragem de correr o risco de ser louco ou trouxa. Correr o risco de se machucar. Correr o risco de começar de novo. Correr o risco de pagar pra ver. Correr o risco de assumir os sentimentos. De pedir o que se quer. Chorei muito mais pelas coragens que guardei em gavetas e não usei do que pelos riscos que assumi– esses sempre me deixaram o gosto do “fiz a minha parte”. “A vida embrulha tudo” é a frase que Guimarães usa antes de explicar como a vida é: e no seu embrulho muitas vezes falamos o que não queríamos, fazemos o que não devíamos, nos questionamos e concluímos, batemos portas e rotulamos (a nós e aos outros) de trouxas ou loucos. Incerteza é chão que deforma nossas passadas, nos transformando em quem muitas vezes não somos.

Lógico que esse não foi meu único caso de proximidade com a “loucura emocional”. Já devo ter sido “a louca” de alguém. Já tive meus “loucos”. Muita teoria absorvida depois, digo: não me assusto mais com a humanidade de ninguém, até me sinto tocada. Pensando numa era tão tecnológica que todo mundo está acessível a qualquer momento a inacessibilidade de alguém pode ser uma barreira difícil de digerir. Pensando em tempos líquidos, tempos em que o de praxe é ir embora sem despedida (eticamente: até ao ser demitido do trabalho você tem o direito a um feedback, a conhecer as razões que causaram a ruptura e se souber converter limões em limonadas pode tentar se aprimorar – nos relacionamentos de hoje, alguém faz isso, gasta tempo explicando algo? Eticamente, no trabalho você tem avaliação de período de experiência, para ter a chance de saber onde está errando e a oportunidade de melhorar), pular para o próximo passo com excessiva velocidade, com o famoso “sumiço” ou com o aplicativo que sinaliza para a pessoa que você não está mais interessado (outrora já critiquei esse aplicativo comparando-o a comprar tangerinas já separadas em gomos no mercado, hoje acho ele melhor que o sumiço, ao menos) é difícil entender as razões de cada vez mais pessoas se sentirem loucas ou trouxas quando se dispõem a ficar enquanto todo mundo parece estar correndo? Bauman diz, em seu livro “Modernidade líquida”:

““Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio Prudence, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre os corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.
A velocidade, no entanto não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar mais de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino.”

Ele possui ainda um trecho, dessa vez em “Amor líquido” em que compara o amor com a morte. Mesma lógica utilizada por Clarissa Pinkola Estes em “Mulheres que correm com lobos”: sendo o amor o que bagunça nossa experiência, quantas e quantas vezes ao nos vermos próximos de alguém esperneamos tentando fugir, nos questionando se aquela é a pessoa certa, se estamos prontos para o envolvimento, se de fato aquela pessoa cabe na nossa vida, se seria esse o momento, se gostamos tanto assim, etc? A morte não precisa ser literal e sim o processo natural da transição de ciclos e tempos inerentes as transformações de quem somos e encerrar e recomeçar em qualquer esfera tem dor de despedida. Baudrillard complementa essa lógica quando traz a noção de “sociedade do consumo” onde somos todos seres a serem consumidos e descartados como mercadoria ao preenchermos o espaço que nos foi designado – as desculpas para o não-envolvimento são muitas, as apostas no envolvimento cada vez mais raras. É fácil justificar um “adeus” e difícil receber uma “segunda chance”.

Hoje me parece loucura gostar fingindo que não gosta. Parece perda de tempo ter que fingir tanto para despertar algum interesse primário do ego da conquista. Parece superficial não perdoar. Parece medroso não falar o que se sente. Parece tolo deixar partirem pessoas interessantes pelo nosso medo de sermos interessados. Quem será que está sendo mesmo o louco/trouxa dessa história?

Um comentário:

  1. Acho que somos sempre trouxas e loucos ao longo da vida, mas a verdadeira coragem é esquecermos de todas as vezes que fomos trouxas e sermos loucos para então...sairmos do conforto e tomarmos as rédeas da nossa vida!

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