domingo, 13 de dezembro de 2015

Os contos proibidos do Marquês de Sade


Arnaldo Antunes e Marisa Monte começam a canção "Paradeiro" com a seguinte pergunta: “Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de nós?”. Assistindo “Os contos proibidos do Marquês de Sade”, de Philip Kaufman, foi impossível não ficar com essa frase na cabeça quase que o tempo todo. O marquês se mostrava uma bomba de desejo prestes a explodir a qualquer momento: onde aquele desejo iria parar? Haveria paradeiro, ou sentido, dentro ou fora dele? O filme é um tratado sobre ética, poder e obsessões.

Em primeira vista o Marquês se apresenta como alguém que tinha um objeto fixo de desejo: o sexo e todos os seus desdobramentos, todas as suas possibilidades, toda a sua oferta de gozos possíveis e intermináveis sem nenhuma culpa moralizante ou moralista, muito pelo contrário, quanto mais perversa (perversão: saber que existe uma regra que se aplica a todos e julgar que a você ela não é aplicável – observem a crise política atual, será que não estamos em um recorte social perverso?) fosse a proposta, maior era a recompensa do gozo – gozando duplamente, primeiro no ato de infringir os costumes já estabelecidos e depois no gozo em si, na descrição sexual que ele constrói em forma de narrativa a partir de se discurso de escritor.

O marquês se apresentou como um hedonista: cego em seu próprio desejo de prazer, só lhe interessava o que pudesse lhe oferecer satisfação e a sua vida girava em torno da busca pelo gozo e assim sendo, as necessidades do outro ficavam sempre inacessíveis para ele, com sua apatia pela empatia. Em primeira instância o Marquês parecia ser somente um compulsivo sexual que gostava de exibir sua criatividade para a perversão, chocando ao ignorar os princípios regentes e fazendo sucesso entre os leitores por servir de espelho para a perversão reprimida de cada um, num acordo de transferências digno de análise ou, sendo o portador do sintoma de uma sociedade histérica. “Haverá paraíso sem perder o juízo?”, prossegue perguntando Arnaldo Antunes em minha mente.

Contudo depois de algumas peripécias inconsequentes nas quais o Marquês pretende afrontar diretamente o alienista do manicômio - que embora já seja um senhor de idade, casa-se com uma jovem de dezesseis anos até então criada por freiras – seu maior objetivo é mostrar que por trás da “roupa moralista” que os homens usam socialmente – inclusive os que se auto intitulam bons homens - eles estão tão sujeitos (enquanto a-sujeitados) a seus desejos e perversões sexuais, quanto o próprio Marquês, que se difere apenas pela coragem de assumir e se tornar porta voz do seu desejo. Como punição pelo afronte o Marquês tem todas as suas penas, tintas e folhas de papel tomadas pelo abade que toma conta do manicômio. O que se sucede é um desdobramento interessante para a história. Ele então começa a sofrer bastante com a ausência da possibilidade de escrever e entra numa violenta “crise de abstinência”. A partir daqui, ele se transforma e nosso olhar sobre ele, para não se banalizar, precisa se transformar também senão ficaremos presos no raso da “primeira impressão” pois há sempre algo que escapa e nunca captamos, mas há também sempre camadas que são desveladas com o aprofundar do nosso olhar e conhecimento da causa.

Sade vai fazer de tudo para que não calem a sua pena (voz, discurso): escrever com vinho, num lençol branco e até mesmo escrever com sangue numa parede branca quando nada mais de sua dignidade sobrar. O Marquês vai abrir mão de tudo: luxos, dignidade, uma vida indolor e até mesmo da própria vida, lutando pelo direito de viver seus desejos – o único jeito de vida possível para ele. Dizem que quem escreve deseja tornar-se imortal (como os escritores da Academia Brasileira de Letras, por exemplo, que ao receberem uma cadeira, tornam-se “imortais”), assim como dizem psicanaliticamente que o gozo sexual é uma forma de manter-se vivo em resposta a pulsão de morte, além de serem a possibilidade de geração de filhos que são a nossa continuidade no mundo, nossa possibilidade de imortalidade. Me pergunto: o que ele queria era uma vida notória ou uma vida imortal? Ambas?

“Haverá paradeiro para o nosso desejo dentro ou fora de um vício?” Sade provavelmente responderia não a essa questão, tal qual Cazuza. Os dois passaram a vida correndo contra o tempo para exaurir a maior quantidade de prazer possível antes que a fonte secasse, os dois preferiam viver poucos anos a mil do que mil anos do que eles julgavam pouco. E muito ainda era pouco para eles. Foram levados pela vida que levaram. Mas qual é exatamente o objeto de gozo do Marquês: o sexo, a infração ou a escrita? Penso numa tríade impossível de ser dissociada, alimentando-se de forma complementar – talvez se vivo nos nossos tempos em que tudo é permitido e inclusive estimulado, ele fosse mais um que chegasse ao psicólogo pois não consegue gozar.

O mesmo homem que por uns era visto como compulsivo sexual, era visto por outros como um infrator da moral e por outros ainda como um escritor apaixonado. Certamente havia ainda mais homens dentro desse homem, certamente se ele não tivesse vivido em tempos repressores e tempos em que a loucura era tratada com choques, pancadas e “afogadinhas” pudéssemos construir outro perfil dele, perceber outras facetas por detrás dos vícios (já nos lembra Lacan, retomando a psicanálise “você É o seu sintoma”). Fato é que, ele foi até o seu fim regido pelo seu desejo (constitutivo) de engolir o mundo num gole sem fim ou de nunca conhecer o dissabor de pisar no pedal do freio durante a corrida. Morreu desejando a vida. Morreu desejando. Foi sujeito de suas escolhas e pagou o preço cobrado por elas. Quantos de nós podemos dizer que fazemos isso?

“Haverá paraíso sem morrer?”



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