segunda-feira, 25 de julho de 2016

A (hipótese) da "lógica do desafio"


Junto com a revolução francesa nasceu o conceito da Meritocracia – até hoje utilizado, muito polêmico e combatido pela reforma pedagógica. Se antes todos os benefícios eram dos aristocratas por direito fundamentado em suas origens, a partir da revolução todos os cidadãos passaram a poder alcançar suas conquistas próprias pelas vias de seus “méritos”. A partir desse marcador histórico conceitos como disciplina, esforço, dedicação e superação passaram a ser estimulados e vigorar como regra de conduta.

É em função dessa lógica conceitual que a gente acha que é “ok” (ou até “inspirador”) ler reportagens enaltecendo adolescentes que estudam oito horas por dia para “realizar o sonho” de passar em algum vestibular concorrido ou pessoas em situação completamente desfavorável (pobreza, jornada tripla, dificuldades) sendo aprovados em concurso público, por exemplo. É por isso também que o mote da maioria dos livros e palestras motivacionais se baseia em “seja o autor da sua história”, “tome as rédeas da sua vida” ou “faça acontecer”. Até na academia introjetamos que “sem dor, sem ganho” quando tentamos emagrecer ou ganhar massa.

A palavra “impossível” saiu do vocabulário por desuso já que tudo parece ser questão de se comprometer com o objetivo. Assim fica fácil entender o tanto que aumenta a frustração quando a gente não consegue algo que deseja né? Já que é como confessarmos ao mundo que somos tão incompetentes que nem com toda combinação de disciplina, esforço e dedicação (receita tão divulgada, oras!) conseguimos atingir nossas metas. Não, não haveria de ser porque não existem vagas universitárias ou de concurso suficientes para todos os que as desejam, há de ser sempre inabilidade nossa. Não, não haveria de ser porque nosso organismo segue seus vieses biológicos individuais que não engordamos, emagrecemos ou ficamos sarados e sim porque estamos sendo preguiçosos.

Talvez tenhamos nos conectado tanto com a logica de superar dificuldades para fazer grandes conquistas que ate nossa vida sentimental estejamos regendo sob esta batuta. Li o trecho do livro Romance Moderno do Aziz Ansari na Piauí (http://piaui.folha.uol.com.br/materia/sera-que-ela-vai-escrever-de-volta-sera-que-nao/) e fiquei com a pulga atrás da orelha. Aziz usa muitos estudos baseados em pesquisas científicas de credibilidade para estabelecer relação entre dificuldade e atração. Ok, sei que esse papo não é de hoje senão a máxima de “trata mal que eles pagam pau” não estaria em vigência, certo?

Aziz cita um estudo de Erin Whitchurch, Timothy Wilson e Daniel Gilbert que mostrou a um grupo de mulheres perfis de rede social masculinos que, segundo os pesquisadores, haviam visitado o perfil delas. Elas eram informadas de que uma parte do grupo as havia achado interessantes, outra parte as julgava desinteressantes e a terceira parte foi atribuída a ‘incerteza’ sobre o feedback que era atribuída aos seus perfis. A mulherada declarou que quem persistiu em suas mentes após o encerramento havia sido o grupo dos incertos. Tudo indica que sim, quanto mais rara for a água maior será a sede. O que pensar sobre isso?

Groucho Marx tem uma frase certeira, que talvez elucide um pouco as coisas: “recuso-me a fazer parte de um clube que me aceite como sócio”.  Lacan, psicanalista francês, cunhou o termo ‘grande outro’ para explicar nossa relação com figuras a quem atribuímos elevado valor, considerando que suas opiniões e impressões acerca de quem somos tem maior peso do que as dos demais. Talvez, portanto, por caprichos de nosso inconsciente, acabemos por escolher pessoas difíceis para desejarmos e repudiemos os que nos aceitam como sócios afinal, quem haveria de nos querer e aceitar? Se não fosse assim será que os tocos que tomamos de pessoas que conhecemos tão pouco para valorarmos tanto nos machucaria com esta proporção? Se não fosse assim porque persistiria esse “querer conquistar qualquer coisa assim em você”de que fala Caetano Veloso em Eclipse Oculto?

Passei dias com esse texto na cabeça, tentando concatenar suas ideias ate que hoje uma amiga me procurou para desabafar. Embora ela tenha quatro pretendentes, deseja uma mulher que lhe disse que não tem interesse em relacionar-se no momento. Ora, ela poderia simplesmente desfrutar dos esforços românticos de quem esta tentando conquista-la, mas insiste – agora esta mesmo determinada a – tentar convencer justo a menina que não a quer de que ela vale a pena. Como a opinião dessa garota em questão acabou virando a mais importante nesse momento? Porque fazer força para convencer alguém de que somos amáveis quando há outras pessoas dispostas a nos amarem sem que precisemos provar nada? Porque dentre tantos clubes só queremos os que não nos querem como sócios?

Posso estar elocubrando muito ao falar de uma “meritocracia sentimental”, de uma “logica do desafio” orientando nossas buscas amorosas, mas se eu estiver me inclinando para uma leitura correta e estivermos todos procurando nos provar através de grandes atributos ou esforços, será que não valia a tentativa de se desafiar a se permitir ser gostado, ser conquistado, mudar o viés pelo qual vivemos a situação? Talvez se a gente parar de correr na subida da montanha a gente possa dar uma apreciada na paisagem, não? Ou podemos continuar bancando o Pink e o Cérebro e dia após dia tentarmos conquistar o mundo. O que a gente ganha fazendo isso eu não sei, mas o que a gente vai perdendo acredito que saibamos todos. 

terça-feira, 19 de julho de 2016

Caras que não valem vinte e cinco centavos de moral



Dos meus quinze anos (época que tive meu primeiro namoradinho) até hoje (treze anos depois embora eu insista em me sentir com “vinte e poucos anos”) eu basicamente estive em relacionamentos sérios com intervalos de solteirice relativamente pequenos, o que me motivou a nesses meus últimos nove meses de solteirice fazer uma espécie de laboratório com os tipos de cara que fui encontrando pelo caminho.  Aprendi muito.
Foi assim que descobri os caras que não valem vinte e cinco centavos da nossa moral embora a gente as vezes teime em não perceber e insista. Foi assim que descobri egos tão frágeis que pareciam ainda adolescentes cheios de coisas a provar a si mesmos, cheios de necessidade de aprovação, cheios de medos. Listo aqui alguns dos tipos de caras que, que pena, não valem as paranoias que criam nas nossas cabeças ou “as fisgadas dessa dor e rimas de um poema” (sim, pode ler a lista abaixo enquanto escuta a Maria Rita cantando “não vale a pena”, a escrevi com essa trilha sonora!).
Eis as ciladas que eu encontrei, Bino:

1.      O vaidoso:

Ele precisa saber que pode seduzir e conquistar. É tão necessitado de aceitação que tem que atirar pra t-o-d-o-s os lados, inclusive para as moças com as quais ele não pretende se relacionar pra ter certeza que seu charme ainda faz efeito. Vai repetir a mesma cantada com todas. Vai falar pra você das moças que deram em cima dele. Vai estar sempre atrás de alguma que pareça “mais difícil de conquistar”. E vai pagar de sensível, se mostrando cheio de dilemas – o que fará você achar que é tudo uma questão de não ter encontrado a mulher certa pra lamber as feridas de jovem incompreendido dele e sossega-lo. Não caia nessa, amiga, manda ele baixar pokemon go pra satisfazer esse frissom de caçador e se poupa, vai por mim. O último dessa espécie que eu conheci já encontrou umas cinco mulheres nos últimos quatro meses e continua na mesma.

2.      O “sincerão”:

Ele se acha muito legal porque já foi logo te dizendo que não quer ter um relacionamento agora. Mas isso não o impede de viver um relacionamento com você, obviamente. Só que sem o nome, pra ele não se sentir pressionado, cobrado ou na obrigação de fidelizar o piupiu. Então sim, ele vai sair com você com certa regularidade. E vai te tratar bem. E vai até ser gentil, se oferecer pra pagar uma conta ou outra, vai te levar na casa dele e vai conversar com você sobre as coisas da vida dele. Aqui tudo pode – menos você se apaixonar, porque ele quer só o bônus, sem ônus. Querida, dê o fora. Quem gosta de adolescente hedonista é orientador profissional. Todas as interações humanas são variáveis e podem dar em algo ou não, lógico – mas pra quê ter tudo com alguém que já tá te dizendo que não vai dar nada e que quando você reclamar disso vai te dizer que sempre jogou limpo com você, como se suas palavras e comportamentos fossem sinônimos e coerentes? Ele não pode abrir mão da sua “liberdade”, tão bem usufruída indo jogar videogame ou ao cinema com os amigos. (sim, eu descobri que até os caras não-baladeiros desenvolveram medo crônico de perder a “liberdade” – me digam vocês meninas, estamos mesmo achando que só porque nos relacionamos com alguém podemos inferir no que ele pode ou não fazer?)

3.      O que não sabe o quer:

Você manda mensagem, ele visualiza e não responde Você se chateia e some. Ele manda mensagem perguntando o que você tá fazendo, dizendo que você sumiu. Você diz que gosta dele e ele que some. Você arranja outro e ele reaparece dizendo que reconhece que perdeu o mulherão que você é. Miga sua louca, se você gosta de repeat usa nas suas música se vê filme repetido, esse aí tá fadado a ser mais looping que looping de montanha russa. Pra cada passo pra frente vão sempre rolar uns pra trás. Se você não estiver tentando fazer aula de dança, deixe pra lá.

4.      O que te trata mal:

Não, ele não vai poder sair com você naquela quarta porque ele já tem um compromisso inadiável com os amigos. Ele também não vai falar que gosta de você porque não precisa, né, se ele sai com você uma vez na semana já tá claro que gosta, né verdade? Tá meio triste porque seu cachorro morreu ou porque a semana tá difícil no trabalho? Liga pra sua amiga porque nosso broder aqui não gosta de sentir que suas expectativas estão conduzindo ele a ter obrigações. Ter DR sobre algo que ele fez e você não curtiu? Nem pensar. Ele não curte DR. E ele só faz o que ele curte.
De mimado já basta aquele seu primo pentelho que bagunça seu quarto no almoço de domingo em família né não, companheira? Se é pra se sentir sozinha e podar quase tudo que você quer falar pra ser aceita por ele, acredita em mim, melhor ficar sozinha.

5.      O “jogador”:

Ele continua no primeiro ano do ensino médio. Acha que quem demonstra o que sente cede poder pro outro, que perde o interesse após ter conquistado o que queria (sim, vivemos nesse grande jogo de videogame com objetivos a serem conquistados e que assim que conquistados perdem a graça e a gente muda o jogo...). Ele calcula todos os passos das interações. De quem é a vez de puxar o papo. Se já é hora de fazer um convite. O que falar para parecer levemente desinteressado. Ele acredita em estratégia, poder e conquista. Chama ele pra jogar War, colega. Ou então nem isso. Monta o tabuleiro, chama as amigas e faz brigadeiro que você ganha mais.

6.      O que “te dá umas dicas pra você melhorar”:

Sabe, você não devia ser tão sentimental. Sua vida seria mais fácil se você falasse menos. Você precisa variar mais os temas dos seus textos. Ou reclama das suas roupas. Ou ele faz piada do que é importante pra você, tipo “ah, agora quer dizer que você é escritora?”. Sério amiga, você já tem mãe e também já tem toda uma pressão social e midiática te dizendo que você não é boa o bastante, pra quê se pendurar num cara desse? Você não precisa mesmo ficar andando por aí com a sensação de que não é uma boa pessoa, vai por mim.


Vocês já encontraram algum desses maravilhosos pelo caminho? No que deu? Acrescentariam algum outro tipo de encosto a lista? Eu sei que hoje em dia vinte e cinco centavos não compra muita coisa, mas sério, melhor guardar na nossa bolsinha de moedas e ir juntando pra algo que valha a pena do que investir num mané desses. A paciência as vezes tem suas vantagens. E sério, pra cada cara que não quer a gente, a vida reserva algum que quer - não é assim com a gente também? Pra cada cara que não conseguiu despertar nosso interesse acaba surgindo um que desperte. 


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Não, não estamos loucas.



Gaslighting é um termo utilizado para explicar situações de abuso em que mulheres são levadas a crer que perderam a sanidade. O termo “gaslighting” vem de um filme (Á meia luz em português, Gaslight em inglês) em que o personagem masculino principal tenta fazer a personagem feminina acreditar que enlouqueceu através de ilusões de percepção, sendo a principal delas ligada as lâmpadas que parecem ter vida própria, numa casa de história já sombria.

Na dicotomia do discurso sobre sanidade/loucura existe um evidente jogo de poder, como pontua o próprio Foucault. Quem é louco tem seu discurso deslegitimado baseado na crença de que toda informação oriunda de uma mente não-sã é baseada em despropósitos. A fala do dito louco pode ate ser escutada, mas não é levada em consideração pela sociedade, pois é representada sempre como construída a partir de fantasias e fantasias, não merecem credibilidade.

A condição de loucura coloca o sujeito em uma posição de invalidez. Se alguém dito louco diz que sofreu abuso é fantasia. Se alguém dito louco diz que sofreu violência é coisa de sua cabeça. Se alguém dito louco fala sobre negligencia é porque não sabe o que diz. Automaticamente. Inquestionavelmente. Argumentos apresentados, me pergunto: será que é a toa que um dos adjetivos mais utilizados por parte dos homens para diminuir a importância do que as mulheres falam é de que estão ``loucas’’?  

A coisa é impregnada de forma sutil e quando nos damos conta já compramos o discurso de ``mulher louca’’ com naturalidade.Todas estamos sujeitas a isso. Certa feita me senti desprestigiada por um rapaz e externei a ele como me sentia desimportante para ele frente ao modo como ele estava agindo. Saí dessa conversa com a incômoda sensação de que eu tinha exagerado, de que estava fazendo drama ou sendo muito dura com ele. Chamei uma amiga pra conversar e expus a ela a situação. Para minha surpresa ela disse que eu definitivamente estava certa de crer que o cara tinha agido comigo como quem não se importa. Eu tive que colocar um terceiro elemento na equação para  acabar com a sensação de ser a errada, a problemática da historia. Por que razão isso acontece?

O processo é historica e culturalmente naturalizado. Fomos criadas para aceitar sermos silenciadas. Só que chega. Então não. Você não é maluca quando se chateia quando ele não responde sua mensagem ou quando ele desaparece no ar sem explicação previa – o comportamento educado ao não querer mais ver alguém é esclarecer a finitude das coisas e não abrir espaços para suposições. Ou pior: você não é maluca quando ele some e reaparece como se nada tivesse acontecido e diz que ao argumentar sobre como você se sentiu sobre isso você esta fazendo drama ou tendo uma reação exagerada frente a situação.

Assim como você não é maluca quando se chateia quando alguém te fala uma gracinha na rua – e ao se queixar você escuta que entendeu tudo errado, que a pessoa só queria te elogiar, pra que levar as coisas tão a serio afinal. Você não é maluca quando se ofende se alguém que você nem conhece te pede nudes. Também não é maluca se não acha razoável seu chefe fazer piadinhas machistas perto de você ou insinuar coisas sobre seu aspecto físico. Nem tampouco é maluca se não achar razoável alguém querer ditar como você deve pensar, se vestir e agir.

Não, também não esta louca quando demonstra o que quer. Quando é sensível e fala de seus sentimentos. Quando se sente insegura frente aos comportamentos e falas do outro. Quando não tolera ser diminuída. Quando expressa o que pensa. Quando impõe seus limites. Quando não permite ser maltratada. Quando questiona. Quando não paga o pato. Quando se protege. Você nunca será maluca por se expressar, não importa o quanto tentem te convencer disso. Não seja vítima do canto da sereia. 


Lembre que há um jogo de interesse por detrás de fazer você questionar sua sanidade, de fazer você achar que esta exagerando, de fazer você se sentir culpada pelo que sente e pelo que fala. Interessa a alguém que você cada vez questione menos e se cale mais. Quanto mais se ver dessa forma mais facilmente manipulada você será, afinal. Então não, não esqueça: você não esta louca (e mesmo que você tenha qualquer condição especifica de ordem psicológica ou psiquiátrica isso não é motivo para aceitar que alguém diz que o que você fala não tem valor, de verdade – afinal também já passou da hora da gente parar de achar que os ditos loucos não possam ter nada a nos dizer).

segunda-feira, 4 de julho de 2016

A boa menina



Todos nós temos nossos medos. Alguns de nós optam por ignora-los. Outros por mergulhar neles e compreende-los. Todos, de alguma forma, construímos estratégias para viver com eles. O meu medo é bastante comum, com certeza - embora pouco assumido, como a maioria dos medos que vivemos, ao fingir que não os temos para não parecer deslocados nessa oba-oba de certezas e seguranças que parece ser a vida de todos ao nosso redor. Cuidado, a grama do vizinho às vezes só é mais verde porque é de plástico. Ah, Pessoa e seu poema em linha reta, como falar de medos quando todos parecem falar de conquistas ininterruptamente?

Eu sempre tive medo de não ser suficiente. De não ser suficientemente boa, suficientemente inteligente, suficientemente interessante e o pior: suficientemente digna de ser gostada. Afinal, assim, por conseguinte eu seria sempre substituída e a culpa (ah, mundo ocidental de ideologia cristã, culpa...) seria sempre minha. Sim, não interessava o quanto as pessoas me elogiassem, os pretendentes se multiplicassem, o quanto as notas fossem boas, os feedbacks bacanas,a terapia andasse (ah, eu sei Freud, eu sei, é que saber nunca foi o suficiente, não é?), a sensação permanecia. E quando a gente tem um problema a gente tenta criar uma solução, certo?

No war da vida meu objetivo era evitar ao máximo essa sensação de insuficiência então minha estratégia era ser o mais “gostável” possível, tentando não fazer nada que pudesse afastar as pessoas de mim. Engoli sapos com os mais diversos temperos enquanto tentava ser Gandhi ou Mandela: vi uma colega de trabalho falar mal de mim para outra e fingi que não vi e continuei trabalhando, desculpei – sem ninguém ter me pedido desculpas – vacilos chatíssimos (términos via whatsapp, por exemplo) em nome da paz, da sensação de “não estar brigada”, de manter as portas da boa vizinhança abertas. Tudo para ser deboísta, tudo para ser querida, tudo para tentar ser suficientemente boa.

Um dia eu me toquei de que não estava funcionando. Quanto mais eu era boazinha mais eu era espezinhada. E não pense que era por “grandes gostares”, desses que nos tratam bem e nos estendem carinho, não. Era por qualquer esmola, mesmo. Aí um dia eu cansei. Cansei da dor de estômago dos sapos silenciosamente digeridos com o molho do medo. Desse jeito todo mundo podia gostar de mim – menos eu. Todo mundo podia me achar muito legal, calma, compreensiva – menos eu, que seguia desesperada tentando varrer meus sentimentos pra debaixo dos tapetes enquanto continuava a sorrir sem demonstrar incômodos, a sentir sem me  permitir sentir, me cobrando sempre ser “um ser humano mais evoluído”.

Em alguma pisada de calo mais doída, eu chutei o balde. Falei com todas as letras sobre como eu me sentia. Que alívio! Eu não fiquei tentando justificar as atitudes da pessoa. Eu apenas aceitei que raiva e frustração eram sensações humanas que eu tinha o direito de sentir e sentindo-as de repente eu não fazia questão que aquela pessoa me achasse gostável. Na verdade, o jogo havia virado: eu não sabia se eu achava que aquela pessoa era gostável. E eu não me importei se eu seria a louca, a chata, a sentimental, eu simplesmente falei como eu me sentia. Eu, enfim, estipulei os meus limites.

Uma coisa tão simples e tão pequena que mudou tudo. Eu não sou um pote de nutella ou uma pizza então não vou conseguir agradar todo mundo mesmo que eu tente com todos os meus esforços. Se não vou agradar todo mundo posso economizar toda energia que eu gasto tentando fazê-lo. Posso (e devo!) usar essa energia para me agradar um tiquinho, para me gostar um tiquinho, para me ser suficiente, afinal eu me convivo o tempo todo.


Não pense que eu mudei com você. Não, eu mudei para mim. Chega de engolir tanto sapo. Talvez seja hora da minha dieta ser de pizza e nutella, afinal.

* Ilustração da Tulipa Ruiz

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Jardim


Justo a mim, tão avessa a manuais de instruções, tão descrente de guias em formato de passo a passo, veio o pedido: por favor, me ajuda, escreve sobre como esquecer alguém. Não julgo, pois não posso, já escutei Vanessa da Matta perguntar “como pode ser gostar de alguém e esse tal alguém não ser seu?” vezes demais e certamente já tive tanta dor de cotovelo que é praticamente um milagre da biologia que os dois continuem aqui firmes e fortes. Não sei se eu já assumi isso assim para o mundo, mas a voz da minha consciência é a própria voz da Bridget Jones de pijama choramingando com “all by myself” de fundo. Com minha vontade de agradar (e meu receio de que não me sugiram mais temas!) eis aqui o melhor que posso oferecer então: o anti-texto, o anti-manual, a anti-resposta sobre a dificuldade da despedida, porque mesmo depois de tantas ainda não acredito – ou não vejo vantagem – em tentar apressar o ciclo da coisa.

Gosto muito de uma metáfora da Márcia Baja sobre sermos jardim. Jardim é coisa bonita de se olhar, mas só quem cultiva um sabe o trabalho que dá. Quem se dedica a jardins sabe que tudo é transitório, desde a beleza das flores a aspereza dos espinhos. Tudo nasce e tudo morre e o jardim continua sendo jardim. Jardinagem exige mão na massa senão o ciclo da natureza sobressai ao estilo do jardineiro, igualzinho ao que a nossa mente faz com a gente. Acabamos de aparar a grama e já nasce uma erva daninha. Acabamos de jurar que não queremos saber como fulano está e ops, vamos parar no seu perfil do facebook.  O que é afinal esse tal de “ser jardim”?

Se sou jardim, tenho cá minhas belezas e atrativos e vira e mexe algum beija flor, borboleta, abelha, bem te vi ou joaninha aparece para passear, encantado talvez com as cores, com os perfumes, com os sabores ou com a própria vida que exala do tudo que é cultivado. O caso é que o jardim é fixo e a presença dos bichinhos é temporária. Não dá pra exigir que qualquer um deles queira ficar mais um pouco. Como foi livre para chegar, há de ser livre para ir e conhecer outros tantos jardins quanto lhe for conveniente. Aqui alguns de nós se rendem a ilusão de controle: não, não, se eu agora plantar uma hortênsia ali ele vai se interessar por ficar um pouco mais para conhece-la. Pode até ser que funcione, mas você vai mesmo aguentar viver no medo do abandono e no esforço de evita-lo? Não sei, acho que só é bonito quando o outro fica por querer ficar. Mesmo que ele vá embora e só aí perceba que sente falta de algum elemento do jardim e por isso volte – não depende de nada que a gente possa fazer, só dos livres desejos do outro, mesmo. (sim, também sou descrente de manuais de conquista.)

Não adianta forçar a barra, no máximo é tocar o Raça negra e segurar essa barra que é gostar de alguém. É ficar meio borocoxô, talvez até mais sem graça que a top model magrela da passarela ou mais solitário que um paulistano, mas continuar com a mão na massa da jardinagem porque o quê mais se há de fazer afinal? Sou contra fingir que não sentimos o que sentimos para parecer mais fortes, descolados, desapegados ou qualquer coisa que o valha. É como a Mística, do X men, querendo usar sua força integralmente, mas precisando desloca-la para manter a aparência da Jennifer Lawrence. Desperdício de energia que poderia estar sendo aplicada em qualquer outra coisa. Tem que sentir. Sentir dá sentido. Tamponar só atrasa aprendizados e amadurecimentos.

Do lado de cá, pessoalmente falando, mais do que o esforço pra esquecer postumamente eu tenho é dirigido as energias para viver de verdade enquanto estou ali, sem me importar se o outro acha que isso é um sinal de que quero algo mais sério, de que gosto demais ou que eu deveria estar jogando os joguinhos. Eu quero a certeza de vida no meu jardim e se tem uma pessoa ali inteira, disponível a ser conhecida, eu realmente quero dedicar meu tempo e energia para conhecê-la, no tempo que eu tiver disponível, pois é necessário saber que é como diz Hazel, de A culpa é das estrelas, alguns infinitos são maiores que outros.

Os visitantes de jardim vem e vão – sim, sabemos que a vida é dada a pragmatismos, por mais românticos que sejamos querendo a visita daquele bichinho específico, porque algo nele nos tocou – e o jardim fica. A gente acorda com olheiras e o sol continua brilhando lá fora. A gente pensa na pessoa e continua tendo que bater o ponto no horário determinado. A gente desabafa com alguém de confiança ou pede a uma amiga para escrever sobre isso e continua fazendo planos para o fim de semana.

Como esquecer eu não sei, talvez eu acredite mesmo no clichê do conselho de mãe, de que seja coisa do tempo passar . Até porque, pós Brilho Eterno de uma Mente sem lembranças, acho que esquecer pode ser de uma crueldade ou de uma burrice das grandes.  Enquanto se lembra só não deixe o jardim morrer. Vá ocupando a mente com ele. Não se prive da sua própria beleza. Vá olhando pedra e vendo pedra mesmo. Até o dia em que você consiga olhar e ver, de novo, poesia.


sexta-feira, 17 de junho de 2016

E se definir for realmente limitar ?



Logo após uma amiga me mandar uma mensagem dizendo como agia uma pessoa quando ela realmente gostava de você. Eu tinha acabado de responder dizendo que a gente tinha sido criada numa cultura de amor romântico, que meio que dava uma generalizada sobre como é que deveria ser gostar de alguém, mas que era possível que as pessoas gostassem sem seguir aquele manual prévio (e que seria uma pena a gente perder estas pessoas por só conseguir enxergar o manual). Sim, se a gente ler o próprio Freud, em um artigo chamado “A dinâmica da transferência”, vamos entender que a maneira que a gente gosta das pessoas e volta nossa energia pra esse gostar é muito composta pelas vivências de como fomos gostados, aliada a essa parcela da cultura já que não somos bonequinhos soltos num universo sem contexto, né? Ou seja: até viemos equipados com as ferramentas para gostar, mas é algo que aprendemos, tal como comer, falar ou vestir as nossas próprias roupas.

Assim que mandei essa resposta vi que um amigo, com quem sempre compartilho essas inquietações de “ter que” (ter que formar, ter que ter emprego, ter que subir na carreira, ter que fazer especialização, ter que casar, ter que fazer festão, ter que ter filhos, ter que ser bonita, etc ao infinito e além) havia me marcado num texto maravilhoso do Gustavo Gitti (sou fã!) no qual ele falava de conceitos não compartilhados, de sair da zona que parece ser a única em matéria de maneira de enxergar as coisas, de quebrar um pouco essa “ditadura” que rege a nossa mente e por consequência a nossos objetivos e o jeito que a gente tenta tocar nossa vida.

Exemplifico: se eu digo “trabalho”, o que logo vem a mente? Horário comercial, delimitado, escritório, chefe, crescer na carreira, resultado, produtividade e por aí vai. Ou, por outro lado, trabalhar com o que se ama, escritórios interativo, horários flexíveis, líder, coworkers, empreendedorismo, etc. Não é tudo a mesma coisa, no fim? Não estamos dizendo que pra ser trabalho tem que ser assim ou assado? Como tirar então o trabalho desse lugar de “trabalho”? Em uma das crônicas de seu livro, “Tá todo mundo mal”, Jout Jout conta que se perguntou sobre isso ao começar a encarar seus vídeos no youtube como trabalho justamente porque não se encaixavam em nada do que ela chamaria de trabalho. Pois é, pelo visto, por mais banalizada que a frase seja quando a gente define, a gente limita – não só a coisa em si, mas especialmente a nossa forma de vê-la e de vivê-la.

E só piora quando a gente vai colocando “próximos passos” como se a vida fosse uma escadinha certeira. Seja na lógica entrar no trabalho, crescer lá dentro, ser promovido, virar chefe ou na lógica do afeto, ficantes-namorados-noivos-casados. Quem disse que só pode ser assim hein? E porque a gente acredita e se sente tão frustrado quando vê que não está sendo?

A gente não partilha os conceitos por mal, claro, e sim pela lógica que rege nossa porção ocidental do mundo (que veja, até vai se transformando com o tempo, mas nunca se desprende de estar presa a algum conceito prévio – como no caso da aceitação dos ficantes ou da necessidade de ver significado no trabalho exercido, que são novas formas de ver o mundo, mas que ainda enquadram como é que o mundo deve ser visto) que nos é ensinada e que facilita toda forma de diálogo por subentender que estamos todos partindo do mesmo pressuposto. E pela nossa própria necessidade humana de borda, de limite, de controle, de organização, de um mundo que pareça fazer algum sentido, ter alguma regência.

Mas e a perda hein? E o sofrimento de tentar seguir essa porção de manual ou de viver regido por esses objetivos palavreados como “carreira”, “promoção” ou “casamento”? E as horas que a gente devia estar aproveitando e perde por estar pensando onde elas tem que parar? Tipo a minha amiga, que ao invés de estar curtindo o paquerinha, está pensando que se ele gostasse dela e isso fosse dar em algo ele deveria ter que estar agindo de maneira y ou z. Tipo outra amiga que já definiu que o trabalho tem que ser assim e pagar o valor x e por isso nunca começa a efetivamente trabalhar. Ou ainda uma outra que vive brigando com o namorado porque “já está na hora” de eles casarem. Pra quê, pra quem, será que é pra gente mesmo ou é só porque parece que o próximo passo está sempre delimitado e se a gente não der estamos fadados ao fracasso?

Não, não é fácil abrir esses tais horizontes e dizer, como o Gitti, que “não trabalho com esses termos”, sério, é bem difícil porque muito naturalizado nos nossos próprios processos internos e muito estimulado quando exteriorizamos. Se você me perguntar o que eu espero de um emprego ou de um relacionamento pode ter certeza que eu vou acabar enumerando coisas! E só depois vou me tocar que estou definindo e delimitando e diminuindo toda extensão de coisas que a “falta de nome” pode me proporcionar. O exercício é contínuo, mas eu tenho acreditado que vale a pena. Desconstruir sem precisar construir nada para colocar no lugar é simplesmente alargar espaços para que tudo possa simplesmente ser.

Obs. A ilustração do post é da Tulipa Ruiz e foi escolhida a dedo. Vai, se você definir que o desenho leva o rosto de uma menina, consegue ver a tulipa? E se definir a tulipa, vislumbra o rosto?

terça-feira, 7 de junho de 2016

Covardia



Filmes que tem diálogos bonitos costumam me marcar a ponto de eu conseguir decorar uma coisa ou outra neles. Adoro a parte do "Segredo dos seus olhos" em que Sandoval fala que você pode mudar de nome, cidade, aparência, mas não pode mudar de paixão. Gosto quando Clementine fala pra Joel, em Brilho eterno de uma mente sem lembrança, que ela não é um conceito, é só uma garota tentando se encontrar. Em "Meia noite em Paris" tem uma parte especialmente boa em que Hemingway diz, em tradução livre: "toda covardia vem de não amar ou não amar bem, que são basicamente a mesma coisa". Lembro que saí do cinema com essa frase na cabeça e até hoje entendo a razão.

Todo mundo tem suas covardias, pequenas e grandes. Toda folha em branco antes de ser texto me convida a ser covarde e nem começar a escrita. Todo rapaz que se aproxima me convida a ser covarde e nem pagar pra ver no que vai dar. Hoje estou especialmente covarde frente a uma apresentação que precisa ser feita para que eu pegue o tão famoso diploma. Toda covardia é um convite a não-ser. É o contrário da ação, o paradeiro do pensamento que conduz a inércia. A covardia preenche meus sentimentos quando penso em me formar e encarar um mercado de trabalho em um momento tão delicado da economia do país. Talvez por isso a frase do Hemingway tenha surgido na minha mente.

Talvez tenha surgido antes, quando uma amiga comentou que estava tentando ter um dia dos namorados legal com o paquerinha mas que ela sentia que ele estava em fuga. Bom, como eles se veem sempre e já tem algum tempo eu disse a ela que suspeitava que fosse um caso clássico de "medo do nome" (confesso: adoro batizar as coisas), em que ele deveria supor que se eles tivessem um encontro no dia dos namorados automaticamente ele seria convertido em, oh, que sina terrível, que destino de tragédia, namorado dela. Não adiantava ela gastar saliva tentando me explicar que não era uma tentativa de pressionar o rapaz a assumir nada porque eu não era o rapaz em questão, ora. Entendo o medo dele, é como se a data o conduzisse por obrigação a assumir um lugar que talvez ele não queira. O nome "ficante" não carrega muitas obrigações, nas costas do nome "namorado" costumamos depositar bem mais expectativas. Entendo a frustração dela - se gostam um do outro (e ela espera que gostem, e eu também, porque senão convenhamos, ela está perdendo de ser gostada por alguém enquanto sai com quem não gosta dela...) e se veem toda semana, porque não podem passar uma data que celebra o gostar fazendo algo legal?

Talvez seja o mesmo cá comigo. Já foram vários semestres. Já foram vários trabalhos. Várias horas de estágio. Não tem porque esse último trabalho ser pior do que nenhum outro. Exceto pelo seu nome. Racionalmente eu tive que subir toda a escada até chegar no diploma e não só esse último degrau. Mas estando tão perto da porta não consigo negar: o último degrau me apavora, porque depois dele só resta a porta que muda tudo, que tira as coisas dos lugares que eu já conheço, de todas as maneiras possíveis. Entendo a minha própria ansiedade frente ao que não controlo. O medo talvez cegue a racionalidade e aí a covardia paralise todo o resto.

Prezado T., não te conheço, mas caso você goste da minha amiga, convide-a para sair, ela não vai se sentir convidada a namorar com você, juro, só vai achar que de algum modo ela significa algo pra você. (Atenção galera que esteja na mesma situação, pode mandar esse texto assim, como quem não quer nada, pros ditos cujos, recomendando tipo "olha só esse texto, achei tão legal, dá uma lida...". De nada, adoro ser útil.) Prezada Juliana, chega de elocubrar sobre a covardia, foi ótimo poder alinhar seus pensamentos sobre o tema e se acalmar, agora vamos efetivamente encarar o relatório?

Toda covardia vem de não amar ou não amar bem, que são basicamente a mesma coisa. Tô lembrando.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Romance.



A gente pode culpar o horóscopo, o complexo de édipo, o fato de ter sido filha única durante muito tempo, o excesso de filmes românticos, a adolescência embalada pela voz do Renato Russo e do Marcelo Camelo, o dom de dramatizar digno de Shakespeare ou até mesmo a habilidade de ficcionalizar a realidade adquirida com anos de prática elaborando roteiros para a vida das bonecas Barbies. A culpa é minha e eu coloco em quem eu quiser, como dizem por aí.

Eu batizaria de síndrome de Lisbela. Sim, eu quero um amor desses de cinema. Não, não se engane, não faço questão que o show seja para a platéia. A platéia do espetáculo há de ser só eu mesma, que apesar de tudo, nem sei como, eu sou discreta. Adoro uma purpurina, um paetê, um spotlight, um filtro que deixe a cena mais bonita do que ela naturalmente é - mas gosto de tudo isso em silêncio, sem alardes, protegido do palpite alheio.

Desculpa, é que as vezes eu me perco e quando eu me acho é um Deus nos acuda, sempre apareço sabendo exatamente o que eu quero e o que eu quero é romantizar a minha vida. Não, não quero personagens com roupas de tons sóbrios, fotografia realista, roteiro de filme europeu cabeção. Deus me livre! Eu tô mais pra cores de Almodovar, mulheres de Almodovar, inseguranças, paranoias e frases de efeito Allenescas e toda sorte de beijos, da preferência de qualquer diretor. Vira o homem aranha de cabeça pra baixo, coloca uma chuva pra cair enquanto o casal rodopia, traz a Bridget Jones de calcinha e sobretudo correndo atrás até ganhar o encontro dos lábios. Brega, mas e daí?

Eu quero o cheiro da pipoca. O deslumbramento diante das cenas. A ansiedade de não saber o que virá depois. Eu quero chorar. E quero rir. E quero me apaixonar e ver beleza nas histórias por conta disso. Quero andar na rua e lembrar que ali protagonizei a cena tal. Ouvir uma música e lembrar de um momento. Não tem jeito, eu só sei ir se for de cabeça. Mais do que isso, ir de outro jeito não me interessa, mesmo.

Então, só entre em cena se for pra fazer cena. Não quero figuração. Encontros formais. Não, não. Eu quero olhos nos olhos. Quero ser chamada de linda. Quero abraços apertados. Quero ouvir que você sentiu saudade. Quero tomar um vinho numa noite de céu bonito. Quero dormir junto. Quero que ao acordar você queira me dar bom dia e que pensar em passar dois dias sem falar comigo seja uma agonia. Quero que você pense sobre como m agradar. Desculpa, mas é o que eu quero. Se a vida não tem roteiro eu posso encher a minha de graça como me convier, correto? Escrevo minhas palavras, sorrio meus sorrisos, rego minhas flores, me capricho, me exagero.

Não quero ser figurante que mata as tardes de terça nas quais você não teria o que fazer. Não quero mais do mesmo que o mesmo eu tô sempre colorindo, recortando, pincelando, reescrevendo, reencaixando, fazendo o avesso do avesso do avesso. Você já me ouviu contar um caso? Pode ser sobre a ida a padaria e voilá, lá estou eu colocando pitadas de emoção. Eu só quero ficar eternamente no cinema. Eu só tenho uma quedinha pelos palcos. Eu só gosto de me encantar com histórias. "Eu quero a cena onde eu posa brilhar, um brilho intenso, um desejo, eu quero um beijo, um beijo imenso, onde eu possa me afogar." Apenas.



sábado, 16 de abril de 2016

Tem gente que é especial.



Tem pesquisas científicas que comprovam que mesmo nossos pais tem um filho “preferido”. Todo mundo já se queixou que o professor “protegia” fulano.  Tem um meme na internet que diz que mesmo quem tem “vários esquemas” (tradução: está saindo e se relacionando com várias pessoas de forma simultânea) tem no repertório uma pessoa que se destaca – talvez aquele que ganhe a preferência na fila das saídas ou a disponibilidade no final de semana, sempre mais disputado.

É inevitável dar caráter valorativo as coisas, as experiências, as pessoas. Categorizamos por rótulos para que tenhamos a impressão (falsa) de as apreendemos com inteireza, de que as limitamos, de que as compreendemos. Tateamos no escuro como cegos na floresta e tentamos a todo custo ter qualquer noção de segurança, de saber onde estamos pisando. Não sabemos. Nunca saberemos. É a nossa sina. A olho nu é tudo muito engraçado, somos tanto a repetição de nós mesmos e não nos damos conta.

Fingimos que somos todos muito diferentes e na verdade somos muito mais parecidos do que supõe o nosso ego e ainda assim elegemos pessoas para nos saltarem os olhos, para fazerem com que no canto dos nossos olhos “a menina dance.” E não, isso não é ruim. Tem gente que nos capta sem que consigamos dizer com o quê, se é o cheiro, o sorriso aberto, o desenho do olhar, o toque da pele, o som da voz, a paz que desperta ou a turbulência que nos provoca.

 Das coisas mais generosas que podemos fazer é estender ao outro a sensação de que ele é especial – de que algo que emana dele nos toca. De que o encontro que estamos tendo com ele – por mais que tenhamos tido outros semelhantes – é único por ser com ele, mundo que se desvela sob os cuidados dos nossos olhos, mundo que ao se abrir nos interessa e comove. Mundo que ao colidir com o nosso “mexe qualquer coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe”.  As estratégias são as mais diversas mas todo mundo está caminhando na própria companhia tentando entender o próprio valor.

“Desespecializar” as pessoas tornando-as iguais as outras porque nosso repertório de encontro é limitado é das coisas mais duras que se pode fazer. Eu sei, alguns se motivam e começam a “tentar conquistar qualquer coisa assim em você: o que será?” e outras apenas se afastam, pois tem coisas que não se ensinam – ou se é ou não se é. As melhores coisas são. Sem a lógica do domínio da nossa mente. Simplesmente jogadas no caos que nos cerca.

Vinte e oito anos atrás duas pessoas que eu amo e admiro resolveram oficializar o quanto se achavam especiais aos olhos uma da outra. Certamente ele cravou os olhos em muitos olhos até chegar naqueles olhos verdes dela. Certamente ela ouviu muitas palavras bonitas até seus ouvidos serem tocados pelas dele. Inquestionavelmente ele tinha achado outras pernas bonitas e ela tinha visto outros rapazes tocando timbau com cara de “artista-de-humanas”. Mas ainda assim, dentre todas as mesmices que nossos roteiros parcos inscrevem na gente essas duas pessoas se encontraram e se destacaram no jogo de luzes uma da outra.

Nâo, não sei dizer como eles começaram a perceber isso pois quando a gente abre mão de controlar a vida ela nos preenche com as mais variadas surpresas: podemos sentir a confiança de adormecer (já se deram conta do quanto adormecer na presença do outro nos coloca em posição de vulnerabilidade?) , podemos ter olhares que “não se consolam” se não imersos no do outro, podemos nos ver sentindo falta na distância, nos entregando em um sorriso, podemos nos ver contando “segredos de liquidificador” que sabemos não sair falando por aí ou falando com todas as silabas das palavras. Se enamorar não significa ser clichê. Não significa nada, na verdade. Se vive e só.

Que bom que vinte e oito anos depois vocês continuam se encontrando e escolhendo se achar especiais. Não tem a ver com o tempo ou com o contrato. O que desejo a vocês é que fiquem sempre enquanto essa “especialidade” fizer cosquinha no peito de vocês. O bonito da vida é isso, pai e mãe. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

Oito de março.



Eu não me sinto segura andando na rua. Parece que desde que Eva apareceu no paraíso com o intuito unicamente de usar seu corpo feminino para seduzir Adão todas nós aqui estamos com o mesmo objetivo e dizer “não” para uma investida é apenas o nosso charminho para parecermos difíceis. Ouço gracinhas por onde passo. “Gostosa. Delícia. Ô lá em casa.” Me sinto praticamente um anúncio andante do açougue, um pedaço de carne disposto na vitrine, para ser visto e avaliado pela qualidade aparente que pode encher o prato na mesa – ou a cama – alheia. Tenho medo de ser estuprada.  Tudo que se refere a mim tem cunho sexual. Sou encoxada no transporte público. Se não dou corda para as cantadas da rua é porque sou frígida. Se dou corda é porque sou vagabunda.  Se algum homem saí do caminho da retidão é porque eu o seduzi com minhas más intenções e bons atributos. Se estou feliz é porque alguém me “deu um trato”.

Se uso saia é sempre porque tô querendo. Se uso short é para provocar. Se uso calça não sou feminina. Se uso batom vermelho é porque sou prostituta. Se saio com as amigas é porque sou disponível ou estou a perigo. Se eu danço não me dou ao respeito. Se eu bebo estou assumindo os riscos das consequências das minhas escolhas. Não posso viajar sozinha ou com as amigas sob a eminência real de ser assassinada. Se converso com um cara tô dando mole. Se mudo de ideia quanto ao mole que eu obviamente estava dando sou uma vaca que coloca rapazes na friendzone.

Na verdade eu só saí de casa pra isso. Toda vez que eu saio de casa é com esse objetivo. Qualquer interação minha tem esse fim. Arranjar um marido.  Todas as ações do meu cotidiano são apenas desculpas para que eu consiga preencher o sentido da minha existência de mulher, ser legitimada:  me casar. Se vou a faculdade, a festa, ao bar, ao escritório, a rede social, tudo ao meu redor existe apenas para me mostrar homens que possam me querer e ocupem esta posição de marido para que eu realize meu sonho de constituir família. A ameaça é sempre em cima disso: se eu não parar de roer as unhas ninguém vai me querer, se eu não parar de falar palavrão ninguém vai me querer, se eu não parar de mandar tanta mensagem no whatsapp vou parecer desesperada e ai, de novo, que tragédia, nem um homem, nem umzinho, vai me querer. E se nenhum quiser, aí eu fico encalhada, pra titia. Tragédia das tragédias.

Eu não posso escolher. O corpo é meu, mas abortar é pecado. O desejo e meu, mas só posso beijar outras garotas se for para parecer sexy aos fetiches masculinos. O destino é meu, mas eu tenho que querer ser mãe para ser completa. Se não quero ser mãe ou se consigo falar do lado difícil da maternidade? Não tenho coração, sou negligente, não estou desfrutando da melhor coisa da vida. Devo cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem. E de quem mais precisar, porque não foi à toa que me deram bonecas na infância, fui educada para o cuidado e para a doação. Fui treinada para a empatia e abnegação. São características “femininas”.

Posso trabalhar fora. Desde que eu não queira ser mãe ou me comprometa a não me ausentar do serviço quando meus filhos adoecerem. Em toda entrevista de emprego vão me perguntar com quem deixo meus filhos quando vou trabalhar embora ninguém pergunte isso ao pai das crianças. Posso trabalhar. Desde que eu não deixe faltar nada em casa para minha família. Desde que minha casa esteja sempre impecável e minhas obrigações domesticas em dia: pratos lavados, chão varrido, roupas no varal. Tenho que saber cozinhar. Desde que meus filhos estejam indo bem na escola. Desde que eu não ganhe mais do que meu marido para não fazê-lo se sentir inferior. Desde que eu esteja em forma. Desde que eu esteja sempre bonita. Desde que não atrapalhe meu apetite sexual. Desde que o trabalho não seja a prioridade da minha vida.

Preciso ser bonita, mas não bonita demais senão não tenho credibilidade e tudo que me aconteceu na vida foi apenas consequência da minha beleza. Tenho que querer transar mas não posso gostar ou falar de sexo.  Tenho que gostar de ler, mas não posso ser inteligente demais ou ter minhas próprias opiniões. Não posso me envolver com gostos que não sejam “de mulher”, como futebol, videogame ou politica. Tenho que ser diplomática e delicada. Tenho que me dar valor. Tenho que merecer ser respeitada. Não posso fazer sexo na primeira noite. Não posso ter fantasias sexuais. Preciso rir quando falam da aparência da Dilma porque e so uma piada, afinal. Preciso estar com a depilação sempre em dia. Não posso ter cabelos brancos.

Tenho que ter um relacionamento estável. Mas não posso encher o saco do meu parceiro falando dos meus sentimentos ou propondo discussões de relação. Não posso querer que alguém tão ocupado se interesse por sentar comigo para falar sobre como foi nosso dia. Tenho que ser leve. Tenho que deixar meu parceiro ser livre e gostar de cozinhar o jantar enquanto ele joga bola com os amigos. Tenho que ser compreensiva com o fato de que os homens foram educados para terem outros interesses e prioridades e por isso ele não me ajuda em casa ou me deixa falando sozinha quando fico “emocional demais”. Tenho que entender que muitas vezes não sou razoável, sou louca, paranoica, grudenta. Tenho que entender que a culpa e minha se eu tiro ele do sério e ele acaba me agredindo. Tenho que respeitar a hierarquia das decisões dentro do relacionamento. Tenho que sustentar joguinhos na paquera. Tenho que gostar de romance. Tenho que saber ``aonde e o meu lugar``.

Sou mulher. Hoje é meu dia. Tenho que agradecer os parabéns. E as mensagens bonitas. E as flores e chocolates se houverem, mas cá estou de novo me queixando da sociedade patriarcal. Cá estou de novo pedindo direitos. Cá estou de novo “fazendo mimimi”, falando de índices de feminicídio, debatendo legalização do aborto, marchando como uma vadia, pedindo por mais representatividade, explicando porque ainda e necessário se falar de feminismo. Hoje é dia de festa e homenagem, porque eu insisto em problematizar tanto? Já disse que eu não posso ser chata?

Hoje é um dos meus dias sendo mulher e sendo mulher todo dia esse texto se repete até as coisas ficarem “normais”, até ser normal não querer sair de saia pra se proteger, até ser normal não andar sozinha pra se poupar, até ser normal ter sempre uma amiga ao menos em condições de sobriedade para evitar qualquer tipo de abuso. Naturalizar o inaturalizável é um dom muito útil.

O meu desejo nesse dia é o mesmo de todos os outros dias: ter voz, ter uma existência reconhecida, ter dignidade garantida, direitos assegurados, ver debates importantes sendo geridos por quem entende deles, ser respeitada, não sentir medo.


É como diz Adélia Prado, no seu poema “com licença poética”:  “Quando nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher”. A minha bandeira não só carrego como defendo. Todo dia. O dia todo. Sempre que precisar.

terça-feira, 1 de março de 2016

O regresso (ou uma metáfora sobre os homens do nosso tempo)



(*Contém Spoilers)

A paisagem é árida. A natureza é selvagem. A vida é rude. As interações são ásperas. Os riscos, eminentes. Todos estão juntos, mas cada um está por conta própria. Não há tempo para minúcias. Sobreviver é um imperativo, como diz um dos personagens a certa altura: “e eu lá estou vivo? Eu vou ganhando um dinheiro para poder sobreviver e vou sobrevivendo. ” De que matéria são feitos os homens – o gênero masculino em sua literalidade - que habitam tal espaço? Os personagens são construídos de modo a oferecer as mais variadas respostas sobre suas fibras e constituições.

Fitzgerald, nosso antagonista, é tão duro quanto o solo que pisa e tão gelado quanto o inverno que se aproxima. Representa o masculino “antigo”, moldado por condições adversas, esculpido para a sobrevivência. Forte, braçal, objetivo. O homem que faz o que há para ser feito sem questionar ou sentir o peso de suas ações – não há tempo para nada disso quando só os fortes resistem. Tão centrado no preço das coisas que acaba por ignorar seus valores. Na natureza selvagem apenas os selvagens sobrevivem, ele acredita e assim se “selvageriza”.

Fitzgerald se opõe diretamente a seu improvável companheiro de jornada, Bridges, que em seu sopro de juventude representa a nova configuração de homens que vem a surgir. O antigo versus o novo. Bridges ainda é  pouco experiente, porém é capaz de sentir empatia, é capaz de abdicação, é capaz de assumir riscos por razões exteriores a si que podem inclusive colocar sua sobrevivência em risco, é capaz de olhar para dentro de si e se avaliar e se sentir. Todavia é ingênuo. Muitas vezes ignora seus instintos. Como tudo que se apresenta em insurgência ainda não confia em si o suficiente e em oposição ao modelo de masculinidade antigo e imperativo muitas vezes acaba aceitando arcar com escolhas que não fez. Em resumo um moleque, que ainda tem muito para entender e crescer, mas que tem bom coração.

Outro expoente dessa nova masculinidade é o capitão Andrew. É justo em suas posturas. Enxerga a responsabilidade que tem sobre seus homens sem imperativo –aceita perguntar, escutar e delegar. Expõe seus sentimentos – como na delicada (e rara) cena em que o silêncio do filme é quebrado por sua voz contando que semana passada ele se lembrava do rosto de sua esposa e hoje teme que ao voltar para casa não a reconheça mais pois esqueceu-se de sua aparência. Um homem que vive a dicotomia de ser chamado a assumir o lugar do masculino “antigo” embora seja um masculino “insurgente” – um homem que vive em torno do desabrido e da morte, mas que acha espaço para falar de seus medos e amores.

Glass é um homem sábio. É o expoente masculino do livro “mulheres que correm com lobos”. Familiarizado com os ciclos da natureza; inclusive o curso natural da vida e da morte de tudo que a compõe. Abraça o silêncio. Respeita a voz do seu sexto sentido. Sabe onde vivem suas raízes. Viveu e vive as suas dores, tão mais intensas que qualquer cicatriz de seu corpo físico – e não somos todos assim, guardando nossos maiores mistérios embaixo das peles? E como já diz Leminski, um homem com uma dor é muito mais elegante.

A sobrevivência de Glass é inequívoca em seu lembrete: sozinhos, não somos. Ele é feito de fibra de resistência certamente, porém sem a piedade do capitão que costura suas feridas apostando em sua sobrevivência, sem a abnegação de seu filho e de Bridges que aceitam serem ovelhas desgarradas para cuidá-lo ou enterra-lo ainda que precisem se enterrar juntos, sem a generosidade do índio que o acolhe e que lambe suas feridas em seus momentos de maior fragilidade (e quantas vezes fomos o índio, hein? Encontramos, partilhamos, ensinamos, cuidamos e acabamos sozinhos com nossas dores depois de tanta benfeitoria? Eu sempre, acho que é a sina da minha vida inclusive) ele simplesmente não teria sobrevivido.

Assim somos todos nós, antigos, novos ou sábios, sem a ponte de intermédio dos outros não chegamos a lugar algum por mais motivados ou fortes que sejamos. Que honremos quem nos compõe então, pois é como disse Gonzaguinha “Aprendi que se depende sempre / De tanta muita diferente gente /Toda pessoa sempre é as marcas /Das lições diárias de outras tantas pessoas”.


Obs. Pessoas muito mais capacitadas escreveram críticas ao filme abordando-o diretamente. Optei por não fazê-lo pois "não sou capaz de opinar". Não quero resumir o filme, nem abordar os aspectos de caráter, esse texto realmente pretende usar os tipos masculinos apresentados no filme para abordar as mudanças do que socialmente se espera de um "homem" na história.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O problema é a premissa


Imagine que você tem um orçamento limitado e deseja comprar um imóvel. Os imóveis são desconhecidos porém o orçamento definido é sua premissa (o ponto de partida sobre o qual você vai construir a linha de raciocínio). Ao olhar um imóvel acima do seu orçamento você pode procurar defeitos no mesmo para explicar sua não-compra. Ao conhecer uma casa que cabe no seu orçamento existe a tendência de que procure pontos positivos que justifiquem fechar o negócio. É provável que em cada casa que você entre encontre exatamente o que procura. Talvez seja parte do mistério do hábito de viver com olhos viciados.

O mesmo acontece quando nos encontramos com pessoas - esses universos inexplorados em constante expansão sob os quais despejamos nossos desejos e afetos ora em baldes, ora em conta gotas.

Se você procura um namorado corre o risco de encontrar. Vai a um, dois, três, sete encontros e só vê o que quer ver. Na lente que procura o namorado talvez o ogro seja visto como carinhoso, o galinha só não tenha encontrado a mulher certa e o frio seja carinhoso  – e se não for é apenas coisa do coitado estar em um dia ruim que quem tem coração acredita no quer. As vezes se quer tanto algo ou alguém que numa espécie de birra enfiamos o hipopótamo na garrafa, compramos gato por lebre e seguimos jurando ter feito bom negócio.

Se você não procura um namorado não vai encontrar. Pode sair com alguém bacana. Pode bater o melhor papo da cidade ou experimentar o beijo mais compatível e ainda assim vai sair correndo com as desculpas de sempre. Quem exige ouvir `te amo` não consegue usufruir do "você è lindo" ou "gosto da sua companhia". Ah, tudo em nome da liberdade...

Basicamente você pegou alguém pra cristo, vestiu sua premissa na pessoa e que fiquem elas por elas. Isso pode ser chamado de encontro? O problema é a premissa que teima em se realizar. O problema é falar de liberdade e tanto delimitar. Se já se inicia o texto tendo escrito a conclusão que espaço há de existir para que a história se escreva e se inscrevam nela os símbolos dos protagonistas?

Luc Ferry em seu livro "A revolução do amor" cita um estudo com macacos bonobos. Os bonobos "por falta de capacidade suficiente de descentralização, por falta de liberdade, entendida como faculdade de se afastar de si mesmo ao mesmo tempo que do mundo no qual esta enviscado, que lhe falta o sentido de reciprocidade". Os macaquinhos podem até ser inteligentes mas não possuem a capacidade de sair de dentro de si, de dar a volta no próprio umbigo. Da próxima vez que a gente quiser colocar muita premissa nas coisas que tal valorizarmos nossa possibilidade de humanidade e nos afastarmos um pouco de um discurso baseado apenas no que a gente quer e procura? Talvez assim a gente ainda se permita ser surpreendido.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Meu tempo é quando?



Naquela quarta-feira fiz seis entrevistas individuais de seleção e ao perguntar aos candidatos que características eles ainda podiam melhorar em si próprios ouvi sempre a mesma coisa: poderiam ser menos ansiosos. De uns tempos pra cá essa resposta tinha se tornado habitual, mas seis assim em sequência chamou minha atenção. Parece que todo mundo se percebe como ansioso e não se sente satisfeito com isso.

De forma macro com os avanços tecnológicos nós fomos sendo convidados a desaprender a esperar. Se meus pais tinham que ir a biblioteca ou pesquisar na Barsa para tirar uma dúvida eu me irrito se o google demora vinte segundos pra me dar as respostas. Será que alguém se identifica com a impaciência diante da imposição de aguardar burocracias ou respostas advindas de terceiros? Ninguém nunca se queixou sobre “esperar tanto por algo tão simples de ser resolvido”?

Quando o blackberry surgiu lembro o boom: era o celular dos homens de negócios que agora em proporções até então nunca vistas estavam disponíveis para o trabalho em tempo integral. Email, chat e telefone no mesmo aparelho, que ainda por cima acusava o recebimento. Não preciso dizer que a sensação é igual a do médico que está de sobreaviso, né? Ele não está no hospital, mas de certa forma está. Atualmente diante dos índices crescentes de doenças psíquicas algumas empresas emitem comunicados salientando que o aplicativo de bate-papo do celular não deve ser usado como meio de comunicação oficial. A palavra “folga” precisa existir de forma concreta. Será que isso é efetivo na prática?

Se antes trocávamos cartas com longos intervalos de espera ou mais recentemente ficávamos do lado do orelhão ou do telefone fixo esperando aquela ligação importante hoje somos facilmente achados a qualquer momento via whatsapp – que, maroto, facilita tanto que permite que as pessoas nos respondam enquanto fazem outras coisas, criando uma nova lógica de comunicação; basta olhar a quantidade de memes sobre “visualizou e não respondeu” para entender a angústia e a sensação de rejeição que isso tem causado, por mais simples que pareça em primeira análise.  

Dizem que a ansiedade é o excesso de futuro no presente e eu acredito nessa lógica. Fazemos a entrevista de emprego e já começamos a imaginar os cenários com as respostas possíveis. Saímos com alguém e queremos logo saber no que vai dar. Respondemos a prova e já estamos pensando na nota. Quem já teve ou já assistiu uma crise de ansiedade sabe do que eu estou falando! É incrível o fenômeno: nosso corpo está no único lugar fisicamente possível, o presente, enquanto nossa mente está em outro lugar completamente diferente se alimentando de emoções criadas por ela mesma no caldeirão de projeções, expectativas e experiências anteriores (afinal lembro que ainda não sabemos o resultado do processo seletivo, do relacionamento ou da prova!). Ansiedade é justo isso, sofrer por não saber.

Na escuta clínica a ansiedade aparece cheia de “quandos”, daí o título desse texto ser uma alusão ao poema de Vinicius de Moraes, Poética I. As pessoas trazem as perguntas cheias de desejo: Quando eu realizarei meu sonho de ser mãe? Quando eu vou conhecer o amor da minha vida? Quando eu vou conseguir aquela promoção? Meu tempo de ser feliz é quando? E dos desejos incessantes nascem as dúvidas indelegáveis: Será que eu sou suficientemente competente para o serviço que me contrataram? Será que eu vou dar conta de ser mãe? Será que eu consigo me virar sozinho? Será que fulano gosta de mim ou sai com outras pessoas também? Será que eu vou conseguir ser feliz?

Se pudéssemos queríamos nossa vida resolvida por decreto. Todos os spoilers anunciados em nossos ouvidos para evitar o sofrimento de imaginar, de esperar, de não saber. De preferência que o trailer já dissesse com quem a gente vai ficar no final pra gente nem gastar tempo e energia criando histórias “a toa”.  Só que a vida não é um texto e sua única conclusão possível é a finitude. Uma vida resolvida é uma vida acabada – que está resolvida por não ser mais possível de ser vivida, apenas.


Na hora do aperto respirar realmente ajuda. E eu costumo usar uma frase da Clarissa Pinkola Estes que diz que “quando uma vida é excessivamente controlada, cada vez há menos vida a controlar”. Faz sentido né? Quanto menos minha mente escrever o roteiro prévio do que vem a seguir menos eu tendo a sofrer com as improvisações que a vida impõe. As vezes isso me consola.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Desculpe, não estou disponível (e nem sequer me dei conta disso).



Minha amiga ficou solteira. Tivemos todos aqueles papos sobre os prazeres do corpo serem o foco do momento dela e o coração ter um descanso (sempre pensando na figura do boizinho do açougue me pergunto: porque a gente acha que é tudo assim claramente separado por linhas pontilhadas limitando o que é tesão, farra, paixão, apego, querer bem? Ô povinho com fantasia de controle somos nós!). Pouco tempo depois estávamos tendo conversas sobre a maior dificuldade de estar solteira ser o não ter com quem contar quando a vida dá pepino, os planos falham, o dinheiro acaba, alguém adoece, a gente se sente sem chão. Claro que temos amigos – prova disso é que estávamos desabafando uma com a outra - mas me parece que nessas horas queremos a presença de alguém que ocupe uma cumplicidade ainda mais específica.

Em alguma instância todo mundo quer alguém. É de nossa natureza sermos seres relacionáveis, contudo o paradigma do nosso tempo é a liberdade e há um “modus operandis” para vivenciá-la – o “sertanejismo”. Carpinejar, poeta gaúcho dos bons, disse que liberdade na vida é ter um amor pra se prender. Que bom que sempre existe mais de uma forma de tocar a vida – mas será que a gente sabe que está escolhendo o que está escolhendo? E será que entende as consequências da nossa escolha?

Vamos ao barzinho. A balada. Entramos no tinder. Todos os olhos estão a espreita para achar “alguém”. E é aí que não me canso de admirar a idiossincrasia humana e de sofrer em função dela. Exemplos não faltam: um cara que insistiu muito para sairmos disse que no quinto encontro todas as mulheres já tinham virado um tédio, uma amiga ouviu de um rapaz que não podia passar de uns beijinhos pois ele morava em outra cidade, um amigo só conseguia ver a paquera uma vez na semana (não sei vocês mas isso sempre me lembra a época da escola quando eu não era senhora do meu próprio tempo) pois ela estava constantemente ocupada com coisas rigorosamente inegociáveis anotadas em uma agenda cheia até dezembro de dois mil e dezesseis, outra colega já foi apresentada ao seu dito cujo enquanto ele anunciava que não procurava nada sério (no meu tempo ainda se usava primeiro o “oi, tudo bem?”).

Brochamos todos, é claro. Tive pavor de ser um tédio e me mandei. Minha amiga achava surreal nem ter beijado alguém que já tinha decidido o futuro da coisa, tirando toda graça do mistério que “sempre há de pintar por aí”. Minha colega resumia sua sensação frente a convicção do rapaz com um trecho da Alice Ruiz “ninguém sabe o que procura”. Meu amigo cansou de disputar com tantas coisas que pareciam sempre tão mais especiais, interessantes e prioritárias do que os momentos com ele.

Costumo pensar no fenômeno como indisponibilidade emocional e de agenda. Talvez seja uma metáfora péssima, mas penso que pessoas sejam como cebolas e a gente precise gastar tempo mesmo retirando as camadas para se encontrar com suas várias facetas. Qualquer pessoa escolada não vai se entregar de cara e qualquer um que não desvele essa camada vai perder de achar uma surpresa nalguma outra. Andamos por aí feito zumbis correndo de um lado pro outro tentando ter tempo para fazer tudo que precisamos e desejamos e nos falta tempo pra perceber que não temos esse tempo pra perder.


Pensando em um casal que eu conheço e que está passando por um momento de distância geográfica eu sorri. O livro que eu ganhei no amigo secreto de final de ano “por onde andam as pessoas interessantes?” não faz mais tanto sentido. Elas estão por aí, certamente. Talvez esperando pra entrarem na nossa vida e bagunçarem toda a nossa pré-programação. Será que nos disponibilizamos a tanto? 

Assim, acho que a pergunta certa a se fazer é: onde estão as pessoas interessadas?

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Quem a gente quer parecer que é



No filme novo do Peanuts, numa manhã de neve em que a turma toda está se divertindo chega um caminhão de mudança trazendo uma nova criança para a vila: a garotinha ruiva.

Charlie Brown logo fica encantado por ela e desejando merecer seu afeto surge em sua mente  uma questão urgente: ele precisa se apresentar para ela como quem ele de fato é antes que ela conheça toda a turma e seja apresentada a ele através de quem a turma pensa que ele é (até porque sua moral com a turma não anda lá muito alta e dependendo do que a ruivinha ouça falar ele teme que ela não lhe dê a chance de uma segunda olhada).

O pobre Charlie pede conselhos a Lucy (justo a ela!) e sai com um livro que ensina a ser vitorioso. Ele devora os capítulos do livro e tenta coloca-los em prática, mas bom, aquele não é ele. Paradoxo: ele tem tanto medo que a ruiva conheça a fama que o precede não por sua improcedência, mas justamente por acreditar em suas verdades e começa a tentar ser o que a cabeça dele (e a de Lucy) imagina que é o homem que a garota ruiva está procurando.

 Quem nunca? Não é essa a lenda de todo início de encontro amoroso? Batalhamos pela oportunidade de nos apresentarmos como somos, mas na sede de nos sermos sem precedentes quantas vezes acabamos nos desperdiçando ao inventar um alguém inédito que definitivamente não somos na esperança de que ele seja o que o outro procura? Dois mil e dezesseis e seguimos comprando e executando receitas que vem da leitura da nossa mente sobre os fenômenos ao nosso redor.

Tive a chance de escutar duas tias falando da experiência universitária da mesma sobrinha. Para tia X a menina tinha suas dificuldades de aprendizagem e um histórico de não gostar de estudar, porém a universidade poderia ser um novo caminho para que ela descobrisse novos gostos. Para tia Y a menina não tinha nascido para estudar e pronto. Ia ser vagabunda e andaria com vagabundos ainda piores do que ela. Não conheço a jovem em questão, mas sei o peso que a opinião dos outros e as realizações que eles esperam de nós – principalmente dos queridos – tem sobre quem somos. De certa forma sempre caminhamos pela terra dos ecos das profecias sobre nós com certa ansiedade para saber se as cumpriremos ou negaremos. No fim, quem é essa menina de verdade? Apenas algum desses dois relatos? A soma de ambos? Ou um universo muito mais complexo? Não, não esqueço Freud, claro que quando as tias me falam da sobrinha me falam também delas mesmas e de suas relações.


Quem é que a gente é de verdade então? Provavelmente nem a gente sabe. Somos pouco educados a olhar pra nós e buscarmos nos entender.  Talvez a gente saiba quem a gente é agora, mas se veja sendo outra coisa daqui a pouco. Talvez a gente nunca seja e sim sempre vá sendo. E se a gente permitir a gente vai se surpreender muito com as coisas que somos capazes de ser porque todo encontro vai nos reinventar e cada pessoa vai despertar em nós a vontade de sermos muitas coisas e, se não nos cerceamos, as seremos. Todo mundo pode fazer o olho de alguém brilhar. Não é mesmo, Charlie Brown? Que puxa!