segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A falácia da leveza


Quando eu vi essa foto no facebook da página "Omi no tinder" comentei que tenho pavor desse papo de "seja leve" por pra mim o termo ter sido banalizado e deturpado, sendo usado por muitos (várias vezes provavelmente sem a análise crítica por detrás do que está sendo dito!) como a tradução de "não me incomode com a sua vida". Meu comentário teve 16 likes, o que me fez pensar e me levou a escrever sobre a existência de um fenômeno que tomei a liberdade de chamar de "a falácia da leveza".

Falácia é qualquer enunciado ou raciocínio que embora falso pareça verdadeiro. Ao escutar "seja leve" você pode subentender que existe a expectativa de que vocês passem momentos agradáveis juntos, que seja divertido, que não haja cobranças ou pressões mas espere, isso é possível? Alguém pode ser leve? É viável (e até saudável) que, como nos propõe o jovem rapaz do tinder, deixemos nossas bagagens passadas para trás? Leveza é calar tudo que sentimos que possa ser interpretado como "pesado"?

A liquidez da nossa sociedade legalizou a babaquice também no âmbito afetivo. É natural que uma pessoa se aproxime da outra com a demanda de "vamos trocar todos os fluídos corporais possíveis, usufruir das nossas liberdades mas não vamos nos envolver". Já nos introduzimos as pessoas limitando o espaço da relação, contendo os fluxos. Os sentimentos estão tão a margem na nossa sociedade de consumo que nossos encontros ficaram empobrecidos e superficiais. A sociedade do espetáculo só autoriza a felicidade então que seja leve ou que não seja pois na lógica do capital tudo é produto e todo produto foi feito para consumo e descarte para criação de nova demanda de consumo. Para nos incluirmos na lógica vigente nos desumanizamos. Abdicamos da possibilidade de sermos marcados ou tocados pelas pessoas e suas experiências. O pavor da proximidade aniquilou nossa capacidade de, de fato, entrar em contato.

Naturalizamos o processo e nos adaptamos a viver conforme a regra sutil do não-envolvimento e repetimos o discurso do "segredo para manter a pessoa interessada" que consiste em coisas como "não demonstrar interesse", "não falar do que sente", "dê um gelo". Misturamos perigosamente os conceitos de interesse e desinteresse. Estamos todos presos na teia da aranha mas de maneira geral os homens consomem e compram mais esse discurso, talvez por ser facilmente atrelado a conceitos como "macho alfa" ou "pegador", construções sociais vendidas a eles em nossa cultura. Quando as feministas lutaram por uma revolução sexual para a mulher não imagino que o que elas esperavam é que se tornasse inadequado questionar como mesclamos tanta intimidade sexual com tão pouco acesso ao mundo interno do outro, seus planos, sonhos, vivências ou que fosse mantida a hierarquia social de gênero que continua assujeitando a ordem dos nossos sentimentos - continuam não tendo o direito de existirem.

A fragilidade inerente ao humano foi alçada a sintoma de vinculação. Demonstrar carinho virou sinônimo de ameaça a individualidade. Expressar insatisfação frente algo que foi dito ou feito virou subversão - se a gente se pega sem envolvimento que anarquia é essa de querer vir cobrar alguma coisa? Cobranças são diametralmente opostas a leveza. Vivemos os "tempos modernos" do amor, repetindo os mesmos movimentos na esteira de material, ganhando o "pão de cada dia" (ou a companhia ou afago - será?) na lógica do mercado e a cada encontro descartando nossa subjetividade emocional, operacionalizando nossas habilidades afetivas, esvaziando nosso repertório relacional para nos adaptarmos a rotina de apertar parafusos sem nunca construir nada efetivamente. Engrenagens que rodam sem sair do lugar.

Não me surpreendo que tenhamos desaprendido a conviver com os diferentes. Que haja tanta intolerância e violência. Que exista tanto desinteresse pelo que não é nosso umbigo e que quando o interesse se instale tentem decretar que tipo de tragédia temos o direito de chorar.

Talvez tenhamos lido revistas de dieta demais e tenhamos confundido leveza com vazio. Que pena.


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