quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Desperdícios

Terminamos a refeição e deixamos um restinho no cantinho do prato a ser descartado em nosso lixo diário. Será que não sabemos a quantidade de pessoas em nosso país que passa fome? Será que não sabemos que com tantos temporais e secas as plantações correm riscos e podemos ficar sem acesso a algum tipo específico de alimento? A pia da cozinha está pingando e ninguém se dispôs a consertar, sempre deixando para amanhã. Esquecemos, novamente, de desligar a torneira enquanto escovamos o dente. Ignoramos a crise hídrica, o nível alarmante dos nossos reservatórios?

Não. Somos bem informados, consumidores de informação. Sabemos de tudo. Por que razão optamos por ignorar esses dados então? Um palpite: a autoconsciência leva a reflexão, que muitas vezes conduz a dor. Dá pra imaginar a culpa de sentar para comer pensando em quantos não tem o que comer? Dá pra imaginar a sensação de conivência ao perceber que jogamos água boa fora? Outro palpite: nos julgamos especiais, abençoados, porque justamente conosco aconteceria de faltar água ou comida? Muitas vezes precisamos nos apoiar na certeza de alguma espécie de proteção em volta de nós para não enlouquecermos diante de nossas próprias fragilidades.

Em tempos líquidos (sim, insisto nessa tecla) estamos desperdiçando também pessoas. Será que estamos tão submersos que não conseguimos mais identificar quando encontramos alguém realmente especial? Será que nossa falta de autoconsciência ou nossa sensação de proteção faz com que não nos demos conta de que enquanto “a vida sem freio nos cega, nos arrasta” corremos o risco de desperdiçar aquela pessoa? Ou será que nos consolamos pensando na hiper oferta de pessoas disponíveis, acreditando que pessoas especiais estão por aí aos montes? Será que daí advém a sabedoria popular do “só damos valor quando perdemos”?

Retomo Clarissa Pinkola Estés que terapeuta experiente, está rotineiramente voltando sua escuta para esse momento e teoriza assertivamente sobre nossos processos no encontro com o outro: “A fase de correr e se esconder é o período no qual os amantes tentam racionalizar seu medo dos ciclos de amor da vida-morte-vida. Eles dizem “posso me dar melhor com outra pessoa”, “Não quero renunciar a meu (preencha lacuna)____”, “Não quero mudar minha vida”, “Não quero encarar minhas feridas nem as de ninguém mais”, “Ainda não estou pronto “ ou ainda “Não quero ser transformado sem primeiro saber nos ínfimos detalhes como vou ficar/me sentir depois” (...) Há quem cometa o erro de pensar que está fugindo do relacionamento com o parceiro. Não, não está. Não está fugindo do amor ou das pressões do relacionamento. Está tentando correr mais rápido do que a misteriosa força da vida-morte-vida. A psicologia diagnostica essa situação como “medo da intimidade, medo do envolvimento”. No entanto, esses são apenas sintomas. A questão mais profunda é de descrença e desconfiança. Aqueles que sempre temem viver de fato de acordo com os ciclos da natureza selvagem.”

O que ela desenvolve de maneira profunda é no fundo alguma novidade? Algum de nós nunca disse ou escutou que “não está preparado para um relacionamento”? Algum de nós nunca se arrependeu de ter perdido alguém? Algum de nós nunca pediu uma segunda chance? Não é possível falar de vida sem falar de morte – ainda que simbólica. O que deixamos viver e morrer nessa fuga?

Essa semana vai ter uma festa de halloween no meu curso de inglês. A coordenadora entrou na sala para nos convocar a irmos. Eu disse a ela que provavelmente não iria já que estava muito cansada. E ela me respondeu “Se você ficar esperando as condições perfeitas nunca vai fazer nada. A gente sempre fala que só vai ter filho depois que terminar o mestrado. Que só vai casar quando a crise financeira passar. Tudo isso é desperdício de vida.” Não é exatamente disso que Clarissa fala? A condição perfeita não existe. E as imperfeitas desperdiçamos em gotas na torneira ou cantinhos de prato. Inconscientemente desejosos de que amanhã haja comida de novo, que no próximo banho haja água e que quando tivermos tempo fulano ainda esteja por aí.

Irvin Yalom em seu livro “O carrasco do amor” fala sobre quando os pacientes chegam ao consultório com a sensação de que já é tarde demais, as coisas já estão perdidas. “Eles gritam por aqueles que estão perdidos para sempre – pais, cônjuges, filhos, amigos – mortos ou ausentes. “Eu quero vê-lo de novo”. “Eu quero seu amor”. “Eu quero que você se orgulhe de mim”. “Eu quero que você saiba que o amo e como me arrependo de nunca ter dito isso”. “Eu quero você de volta – eu estou tão só”. “Eu quero a infância que nunca tive”. “Eu quero ser saudável – ser jovem novamente”. “Eu quero ser amado e respeitado”. “Eu quero que minha vida tenha significado”. “Eu quero realizar alguma coisa”. “Eu quero significar, ser importante, ser lembrado”. Tanto querer. Tanta saudade. E tanta dor, tão perto da superfície, á profundidade de alguns poucos minutos. Dor do destino. Dor da existência. Dor que está sempre lá, sussurrando continuamente sob a película da vida.”

E aí, que postura vamos seguir assumindo diante da comida no prato, da água na torneira, da pessoa encantadora que aparece, do sangue que corre nas nossas veias nos lembrando que estamos vivos? Vamos pensar sobre, agradecer, valorizar, desperdiçar?

“Será que é tempo que te falta pra perceber? Será que temos esse tempo pra perder?”





Glossário de referências:

*Clarissa Pinkola Estés é é analista junguiana, doutora em estudos multiculturais e psicologia clínica. Tem alguns livros publicados no Brasil, entre eles o famoso “Mulheres que correm com lobos” (que eu recomendo insistentemente!)

*Irvin Yalom é psiquiatra e professor de psiquiatria na Universidade de Stanford. Tem vários livros publicados no Brasil entre eles o clássico “Quando Nietzsche chorou”.

domingo, 25 de outubro de 2015

Sobre a moda (e o mundo assustador) do “loucas” e “trouxas”


Eu devia ter uns dezoito ou dezenove anos. Era são joão e eu e minhas amigas tínhamos viajado para o interior atrás de um forrózinho. No dia da festa principal o avistei. Tomei um susto já que da última vez que havíamos conversado ele me disse que o plano original dele era ir pra Caruaru ou Campina Grande. Enquanto dançávamos perguntei o que ele fazia ali e ele me disse, entre lágrimas, talvez até em função da cerveja já ingerida: peguei um bate e volta de salvador porque eu precisava te dizer que estou apaixonado por você.
Um bate e volta daquele envolvia ao menos quatro horas para ir e quatro horas para voltar. Na hora fiquei gelada e tive que dizer a ele que a recíproca não era verdadeira, que podíamos conversar depois, com calma, em uma situação mais tranquila. Menina nova, talvez não tivesse entendido a grandeza daquilo tudo, talvez não soubesse lidar com o que recebia.

Fosse isso hoje em dia ele poderia postar nas redes sociais “desenrolando meu papel de trouxa”. Fosse ele uma mulher estaria sendo enquadrado na síndrome da “mulher louca” – acho que todo mundo conhece essa expressão, comumente utilizada para explicar que uma moça que não tinha compromisso com o rapaz acabou se envolvendo “demais”, passou dos ”limites” do aceitável naquela relação, provavelmente tentou “controla-lo” de alguma forma, deixou claro seu desejo de exclusividade ou expressou de alguma forma algum grau de sentimentos numa variável que vai de “gosto de você” até “te amo para sempre”.

Conversando com um amigo ele me disse que ficava com uma amiga quando eles saíam mas nunca era pré-acordado (nunca são no fundo pré-acordadas as coisas do sentimento, ora!) quando seriam apenas amigos e quando seriam ficantes. Um dia ela “ficou louca” e tentou beijá-lo, o assustando muito. Retruquei: não acho que ela tenha ficado louca! Acho que você pode não ter deixado claro qual era sua onda naquele dia e ela tentou descobrir (pode de fato não ter sido a maneira mais ajeitada de fazê-lo mas de novo: coisa de sentimento tem jeito?). Meu amigo é dessas pessoas lúcidas e reflexivas e aceitou que podia mesmo ser um ponto de vista justo. Inclusive noutro ponto da conversa ele expressou que achava justo a mulher questionar ao cara “o que aconteceu, ainda estamos ficando?” se estivesse em dúvida ou notasse que ele havia mudado, como direito dela de organizar a própria vida. Perguntar ok, tentar beijar assustador. Para outros tudo poderia ser tudo easy. Ou tudo assustador. Idiossincrasias e subjetividades a parte – ainda bem.

Olhando hoje não acho nem louco nem trouxa o rapaz do bate e volta. Acho muito corajoso, isso sim. Faço mea-culpa: pensando bem, quantas vezes pelos corredores da faculdade eu achei que ele queria me dizer algo e me esquivei, pensando que o meu silêncio era suficientemente responsivo? Não era; nunca é, logicamente – o silêncio é tela em branco onde cada um deposita a fantasia que lhe parecer conveniente. O que pra mim era simples silêncio gerou uma angústia tão grande que justificou oito horas dentro de um ônibus. Me orgulho de saber que mesmo depois desse episódio ele não abriu mão de sua coragem e continuou seguindo atrás de todo sentimento que ele julgasse valer a pena. O que posso fazer é tentar aprender com a coragem dele.

“A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” já dizia Guimarães Rosa. Coragem de correr o risco de ser louco ou trouxa. Correr o risco de se machucar. Correr o risco de começar de novo. Correr o risco de pagar pra ver. Correr o risco de assumir os sentimentos. De pedir o que se quer. Chorei muito mais pelas coragens que guardei em gavetas e não usei do que pelos riscos que assumi– esses sempre me deixaram o gosto do “fiz a minha parte”. “A vida embrulha tudo” é a frase que Guimarães usa antes de explicar como a vida é: e no seu embrulho muitas vezes falamos o que não queríamos, fazemos o que não devíamos, nos questionamos e concluímos, batemos portas e rotulamos (a nós e aos outros) de trouxas ou loucos. Incerteza é chão que deforma nossas passadas, nos transformando em quem muitas vezes não somos.

Lógico que esse não foi meu único caso de proximidade com a “loucura emocional”. Já devo ter sido “a louca” de alguém. Já tive meus “loucos”. Muita teoria absorvida depois, digo: não me assusto mais com a humanidade de ninguém, até me sinto tocada. Pensando numa era tão tecnológica que todo mundo está acessível a qualquer momento a inacessibilidade de alguém pode ser uma barreira difícil de digerir. Pensando em tempos líquidos, tempos em que o de praxe é ir embora sem despedida (eticamente: até ao ser demitido do trabalho você tem o direito a um feedback, a conhecer as razões que causaram a ruptura e se souber converter limões em limonadas pode tentar se aprimorar – nos relacionamentos de hoje, alguém faz isso, gasta tempo explicando algo? Eticamente, no trabalho você tem avaliação de período de experiência, para ter a chance de saber onde está errando e a oportunidade de melhorar), pular para o próximo passo com excessiva velocidade, com o famoso “sumiço” ou com o aplicativo que sinaliza para a pessoa que você não está mais interessado (outrora já critiquei esse aplicativo comparando-o a comprar tangerinas já separadas em gomos no mercado, hoje acho ele melhor que o sumiço, ao menos) é difícil entender as razões de cada vez mais pessoas se sentirem loucas ou trouxas quando se dispõem a ficar enquanto todo mundo parece estar correndo? Bauman diz, em seu livro “Modernidade líquida”:

““Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio Prudence, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre os corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.
A velocidade, no entanto não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar mais de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino.”

Ele possui ainda um trecho, dessa vez em “Amor líquido” em que compara o amor com a morte. Mesma lógica utilizada por Clarissa Pinkola Estes em “Mulheres que correm com lobos”: sendo o amor o que bagunça nossa experiência, quantas e quantas vezes ao nos vermos próximos de alguém esperneamos tentando fugir, nos questionando se aquela é a pessoa certa, se estamos prontos para o envolvimento, se de fato aquela pessoa cabe na nossa vida, se seria esse o momento, se gostamos tanto assim, etc? A morte não precisa ser literal e sim o processo natural da transição de ciclos e tempos inerentes as transformações de quem somos e encerrar e recomeçar em qualquer esfera tem dor de despedida. Baudrillard complementa essa lógica quando traz a noção de “sociedade do consumo” onde somos todos seres a serem consumidos e descartados como mercadoria ao preenchermos o espaço que nos foi designado – as desculpas para o não-envolvimento são muitas, as apostas no envolvimento cada vez mais raras. É fácil justificar um “adeus” e difícil receber uma “segunda chance”.

Hoje me parece loucura gostar fingindo que não gosta. Parece perda de tempo ter que fingir tanto para despertar algum interesse primário do ego da conquista. Parece superficial não perdoar. Parece medroso não falar o que se sente. Parece tolo deixar partirem pessoas interessantes pelo nosso medo de sermos interessados. Quem será que está sendo mesmo o louco/trouxa dessa história?