segunda-feira, 7 de março de 2016

Oito de março.



Eu não me sinto segura andando na rua. Parece que desde que Eva apareceu no paraíso com o intuito unicamente de usar seu corpo feminino para seduzir Adão todas nós aqui estamos com o mesmo objetivo e dizer “não” para uma investida é apenas o nosso charminho para parecermos difíceis. Ouço gracinhas por onde passo. “Gostosa. Delícia. Ô lá em casa.” Me sinto praticamente um anúncio andante do açougue, um pedaço de carne disposto na vitrine, para ser visto e avaliado pela qualidade aparente que pode encher o prato na mesa – ou a cama – alheia. Tenho medo de ser estuprada.  Tudo que se refere a mim tem cunho sexual. Sou encoxada no transporte público. Se não dou corda para as cantadas da rua é porque sou frígida. Se dou corda é porque sou vagabunda.  Se algum homem saí do caminho da retidão é porque eu o seduzi com minhas más intenções e bons atributos. Se estou feliz é porque alguém me “deu um trato”.

Se uso saia é sempre porque tô querendo. Se uso short é para provocar. Se uso calça não sou feminina. Se uso batom vermelho é porque sou prostituta. Se saio com as amigas é porque sou disponível ou estou a perigo. Se eu danço não me dou ao respeito. Se eu bebo estou assumindo os riscos das consequências das minhas escolhas. Não posso viajar sozinha ou com as amigas sob a eminência real de ser assassinada. Se converso com um cara tô dando mole. Se mudo de ideia quanto ao mole que eu obviamente estava dando sou uma vaca que coloca rapazes na friendzone.

Na verdade eu só saí de casa pra isso. Toda vez que eu saio de casa é com esse objetivo. Qualquer interação minha tem esse fim. Arranjar um marido.  Todas as ações do meu cotidiano são apenas desculpas para que eu consiga preencher o sentido da minha existência de mulher, ser legitimada:  me casar. Se vou a faculdade, a festa, ao bar, ao escritório, a rede social, tudo ao meu redor existe apenas para me mostrar homens que possam me querer e ocupem esta posição de marido para que eu realize meu sonho de constituir família. A ameaça é sempre em cima disso: se eu não parar de roer as unhas ninguém vai me querer, se eu não parar de falar palavrão ninguém vai me querer, se eu não parar de mandar tanta mensagem no whatsapp vou parecer desesperada e ai, de novo, que tragédia, nem um homem, nem umzinho, vai me querer. E se nenhum quiser, aí eu fico encalhada, pra titia. Tragédia das tragédias.

Eu não posso escolher. O corpo é meu, mas abortar é pecado. O desejo e meu, mas só posso beijar outras garotas se for para parecer sexy aos fetiches masculinos. O destino é meu, mas eu tenho que querer ser mãe para ser completa. Se não quero ser mãe ou se consigo falar do lado difícil da maternidade? Não tenho coração, sou negligente, não estou desfrutando da melhor coisa da vida. Devo cuidar dos meus pais quando eles envelhecerem. E de quem mais precisar, porque não foi à toa que me deram bonecas na infância, fui educada para o cuidado e para a doação. Fui treinada para a empatia e abnegação. São características “femininas”.

Posso trabalhar fora. Desde que eu não queira ser mãe ou me comprometa a não me ausentar do serviço quando meus filhos adoecerem. Em toda entrevista de emprego vão me perguntar com quem deixo meus filhos quando vou trabalhar embora ninguém pergunte isso ao pai das crianças. Posso trabalhar. Desde que eu não deixe faltar nada em casa para minha família. Desde que minha casa esteja sempre impecável e minhas obrigações domesticas em dia: pratos lavados, chão varrido, roupas no varal. Tenho que saber cozinhar. Desde que meus filhos estejam indo bem na escola. Desde que eu não ganhe mais do que meu marido para não fazê-lo se sentir inferior. Desde que eu esteja em forma. Desde que eu esteja sempre bonita. Desde que não atrapalhe meu apetite sexual. Desde que o trabalho não seja a prioridade da minha vida.

Preciso ser bonita, mas não bonita demais senão não tenho credibilidade e tudo que me aconteceu na vida foi apenas consequência da minha beleza. Tenho que querer transar mas não posso gostar ou falar de sexo.  Tenho que gostar de ler, mas não posso ser inteligente demais ou ter minhas próprias opiniões. Não posso me envolver com gostos que não sejam “de mulher”, como futebol, videogame ou politica. Tenho que ser diplomática e delicada. Tenho que me dar valor. Tenho que merecer ser respeitada. Não posso fazer sexo na primeira noite. Não posso ter fantasias sexuais. Preciso rir quando falam da aparência da Dilma porque e so uma piada, afinal. Preciso estar com a depilação sempre em dia. Não posso ter cabelos brancos.

Tenho que ter um relacionamento estável. Mas não posso encher o saco do meu parceiro falando dos meus sentimentos ou propondo discussões de relação. Não posso querer que alguém tão ocupado se interesse por sentar comigo para falar sobre como foi nosso dia. Tenho que ser leve. Tenho que deixar meu parceiro ser livre e gostar de cozinhar o jantar enquanto ele joga bola com os amigos. Tenho que ser compreensiva com o fato de que os homens foram educados para terem outros interesses e prioridades e por isso ele não me ajuda em casa ou me deixa falando sozinha quando fico “emocional demais”. Tenho que entender que muitas vezes não sou razoável, sou louca, paranoica, grudenta. Tenho que entender que a culpa e minha se eu tiro ele do sério e ele acaba me agredindo. Tenho que respeitar a hierarquia das decisões dentro do relacionamento. Tenho que sustentar joguinhos na paquera. Tenho que gostar de romance. Tenho que saber ``aonde e o meu lugar``.

Sou mulher. Hoje é meu dia. Tenho que agradecer os parabéns. E as mensagens bonitas. E as flores e chocolates se houverem, mas cá estou de novo me queixando da sociedade patriarcal. Cá estou de novo pedindo direitos. Cá estou de novo “fazendo mimimi”, falando de índices de feminicídio, debatendo legalização do aborto, marchando como uma vadia, pedindo por mais representatividade, explicando porque ainda e necessário se falar de feminismo. Hoje é dia de festa e homenagem, porque eu insisto em problematizar tanto? Já disse que eu não posso ser chata?

Hoje é um dos meus dias sendo mulher e sendo mulher todo dia esse texto se repete até as coisas ficarem “normais”, até ser normal não querer sair de saia pra se proteger, até ser normal não andar sozinha pra se poupar, até ser normal ter sempre uma amiga ao menos em condições de sobriedade para evitar qualquer tipo de abuso. Naturalizar o inaturalizável é um dom muito útil.

O meu desejo nesse dia é o mesmo de todos os outros dias: ter voz, ter uma existência reconhecida, ter dignidade garantida, direitos assegurados, ver debates importantes sendo geridos por quem entende deles, ser respeitada, não sentir medo.


É como diz Adélia Prado, no seu poema “com licença poética”:  “Quando nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher”. A minha bandeira não só carrego como defendo. Todo dia. O dia todo. Sempre que precisar.

terça-feira, 1 de março de 2016

O regresso (ou uma metáfora sobre os homens do nosso tempo)



(*Contém Spoilers)

A paisagem é árida. A natureza é selvagem. A vida é rude. As interações são ásperas. Os riscos, eminentes. Todos estão juntos, mas cada um está por conta própria. Não há tempo para minúcias. Sobreviver é um imperativo, como diz um dos personagens a certa altura: “e eu lá estou vivo? Eu vou ganhando um dinheiro para poder sobreviver e vou sobrevivendo. ” De que matéria são feitos os homens – o gênero masculino em sua literalidade - que habitam tal espaço? Os personagens são construídos de modo a oferecer as mais variadas respostas sobre suas fibras e constituições.

Fitzgerald, nosso antagonista, é tão duro quanto o solo que pisa e tão gelado quanto o inverno que se aproxima. Representa o masculino “antigo”, moldado por condições adversas, esculpido para a sobrevivência. Forte, braçal, objetivo. O homem que faz o que há para ser feito sem questionar ou sentir o peso de suas ações – não há tempo para nada disso quando só os fortes resistem. Tão centrado no preço das coisas que acaba por ignorar seus valores. Na natureza selvagem apenas os selvagens sobrevivem, ele acredita e assim se “selvageriza”.

Fitzgerald se opõe diretamente a seu improvável companheiro de jornada, Bridges, que em seu sopro de juventude representa a nova configuração de homens que vem a surgir. O antigo versus o novo. Bridges ainda é  pouco experiente, porém é capaz de sentir empatia, é capaz de abdicação, é capaz de assumir riscos por razões exteriores a si que podem inclusive colocar sua sobrevivência em risco, é capaz de olhar para dentro de si e se avaliar e se sentir. Todavia é ingênuo. Muitas vezes ignora seus instintos. Como tudo que se apresenta em insurgência ainda não confia em si o suficiente e em oposição ao modelo de masculinidade antigo e imperativo muitas vezes acaba aceitando arcar com escolhas que não fez. Em resumo um moleque, que ainda tem muito para entender e crescer, mas que tem bom coração.

Outro expoente dessa nova masculinidade é o capitão Andrew. É justo em suas posturas. Enxerga a responsabilidade que tem sobre seus homens sem imperativo –aceita perguntar, escutar e delegar. Expõe seus sentimentos – como na delicada (e rara) cena em que o silêncio do filme é quebrado por sua voz contando que semana passada ele se lembrava do rosto de sua esposa e hoje teme que ao voltar para casa não a reconheça mais pois esqueceu-se de sua aparência. Um homem que vive a dicotomia de ser chamado a assumir o lugar do masculino “antigo” embora seja um masculino “insurgente” – um homem que vive em torno do desabrido e da morte, mas que acha espaço para falar de seus medos e amores.

Glass é um homem sábio. É o expoente masculino do livro “mulheres que correm com lobos”. Familiarizado com os ciclos da natureza; inclusive o curso natural da vida e da morte de tudo que a compõe. Abraça o silêncio. Respeita a voz do seu sexto sentido. Sabe onde vivem suas raízes. Viveu e vive as suas dores, tão mais intensas que qualquer cicatriz de seu corpo físico – e não somos todos assim, guardando nossos maiores mistérios embaixo das peles? E como já diz Leminski, um homem com uma dor é muito mais elegante.

A sobrevivência de Glass é inequívoca em seu lembrete: sozinhos, não somos. Ele é feito de fibra de resistência certamente, porém sem a piedade do capitão que costura suas feridas apostando em sua sobrevivência, sem a abnegação de seu filho e de Bridges que aceitam serem ovelhas desgarradas para cuidá-lo ou enterra-lo ainda que precisem se enterrar juntos, sem a generosidade do índio que o acolhe e que lambe suas feridas em seus momentos de maior fragilidade (e quantas vezes fomos o índio, hein? Encontramos, partilhamos, ensinamos, cuidamos e acabamos sozinhos com nossas dores depois de tanta benfeitoria? Eu sempre, acho que é a sina da minha vida inclusive) ele simplesmente não teria sobrevivido.

Assim somos todos nós, antigos, novos ou sábios, sem a ponte de intermédio dos outros não chegamos a lugar algum por mais motivados ou fortes que sejamos. Que honremos quem nos compõe então, pois é como disse Gonzaguinha “Aprendi que se depende sempre / De tanta muita diferente gente /Toda pessoa sempre é as marcas /Das lições diárias de outras tantas pessoas”.


Obs. Pessoas muito mais capacitadas escreveram críticas ao filme abordando-o diretamente. Optei por não fazê-lo pois "não sou capaz de opinar". Não quero resumir o filme, nem abordar os aspectos de caráter, esse texto realmente pretende usar os tipos masculinos apresentados no filme para abordar as mudanças do que socialmente se espera de um "homem" na história.