Eu não me sinto segura andando na
rua. Parece que desde que Eva apareceu no paraíso com o intuito unicamente de
usar seu corpo feminino para seduzir Adão todas nós aqui estamos com o mesmo
objetivo e dizer “não” para uma investida é apenas o nosso charminho para
parecermos difíceis. Ouço gracinhas por onde passo. “Gostosa. Delícia. Ô lá em
casa.” Me sinto praticamente um anúncio andante do açougue, um pedaço de carne
disposto na vitrine, para ser visto e avaliado pela qualidade aparente que pode
encher o prato na mesa – ou a cama – alheia. Tenho medo de ser estuprada. Tudo que se refere a mim tem cunho sexual. Sou
encoxada no transporte público. Se não dou corda para as cantadas da rua é
porque sou frígida. Se dou corda é porque sou vagabunda. Se algum homem saí do caminho da retidão é
porque eu o seduzi com minhas más intenções e bons atributos. Se estou feliz é
porque alguém me “deu um trato”.
Se uso saia é sempre porque tô
querendo. Se uso short é para provocar. Se uso calça não sou feminina. Se uso batom
vermelho é porque sou prostituta. Se saio com as amigas é porque sou disponível
ou estou a perigo. Se eu danço não me dou ao respeito. Se eu bebo estou
assumindo os riscos das consequências das minhas escolhas. Não posso viajar
sozinha ou com as amigas sob a eminência real de ser assassinada. Se converso
com um cara tô dando mole. Se mudo de ideia quanto ao mole que eu obviamente
estava dando sou uma vaca que coloca rapazes na friendzone.
Na verdade eu só saí de casa pra
isso. Toda vez que eu saio de casa é com esse objetivo. Qualquer interação
minha tem esse fim. Arranjar um marido.
Todas as ações do meu cotidiano são apenas desculpas para que eu consiga
preencher o sentido da minha existência de mulher, ser legitimada: me casar. Se vou a faculdade, a festa, ao
bar, ao escritório, a rede social, tudo ao meu redor existe apenas para me
mostrar homens que possam me querer e ocupem esta posição de marido para que eu
realize meu sonho de constituir família. A ameaça é sempre em cima disso: se eu
não parar de roer as unhas ninguém vai me querer, se eu não parar de falar
palavrão ninguém vai me querer, se eu não parar de mandar tanta mensagem no
whatsapp vou parecer desesperada e ai, de novo, que tragédia, nem um homem, nem
umzinho, vai me querer. E se nenhum quiser, aí eu fico encalhada, pra titia.
Tragédia das tragédias.
Eu não posso escolher. O corpo é meu, mas
abortar é pecado. O desejo e meu, mas só posso beijar outras garotas se for para
parecer sexy aos fetiches masculinos. O destino é meu, mas eu tenho que querer
ser mãe para ser completa. Se não quero ser mãe ou se consigo falar do lado
difícil da maternidade? Não tenho coração, sou negligente, não estou
desfrutando da melhor coisa da vida. Devo cuidar dos meus pais quando eles
envelhecerem. E de quem mais precisar, porque não foi à toa que me deram
bonecas na infância, fui educada para o cuidado e para a doação. Fui treinada
para a empatia e abnegação. São características “femininas”.
Posso trabalhar fora. Desde que
eu não queira ser mãe ou me comprometa a não me ausentar do serviço quando meus
filhos adoecerem. Em toda entrevista de emprego vão me perguntar com quem deixo
meus filhos quando vou trabalhar embora ninguém pergunte isso ao pai das crianças.
Posso trabalhar. Desde que eu não deixe faltar nada em casa para minha família.
Desde que minha casa esteja sempre impecável e minhas obrigações domesticas em
dia: pratos lavados, chão varrido, roupas no varal. Tenho que saber cozinhar.
Desde que meus filhos estejam indo bem na escola. Desde que eu não ganhe mais
do que meu marido para não fazê-lo se sentir inferior. Desde que eu esteja em
forma. Desde que eu esteja sempre bonita. Desde que não atrapalhe meu apetite
sexual. Desde que o trabalho não seja a prioridade da minha vida.
Preciso ser bonita, mas não
bonita demais senão não tenho credibilidade e tudo que me aconteceu na vida foi
apenas consequência da minha beleza. Tenho que querer transar mas não posso
gostar ou falar de sexo. Tenho que
gostar de ler, mas não posso ser inteligente demais ou ter minhas próprias
opiniões. Não posso me envolver com gostos que não sejam “de mulher”, como
futebol, videogame ou politica. Tenho que ser diplomática e delicada. Tenho que
me dar valor. Tenho que merecer ser respeitada. Não posso fazer sexo na
primeira noite. Não posso ter fantasias sexuais. Preciso rir quando falam da
aparência da Dilma porque e so uma piada, afinal. Preciso estar com a depilação
sempre em dia. Não posso ter cabelos brancos.
Tenho que ter um relacionamento
estável. Mas não posso encher o saco do meu parceiro falando dos meus
sentimentos ou propondo discussões de relação. Não posso querer que alguém tão
ocupado se interesse por sentar comigo para falar sobre como foi nosso dia.
Tenho que ser leve. Tenho que deixar meu parceiro ser livre e gostar de
cozinhar o jantar enquanto ele joga bola com os amigos. Tenho que ser
compreensiva com o fato de que os homens foram educados para terem outros
interesses e prioridades e por isso ele não me ajuda em casa ou me deixa
falando sozinha quando fico “emocional demais”. Tenho que entender que muitas
vezes não sou razoável, sou louca, paranoica, grudenta. Tenho que entender que
a culpa e minha se eu tiro ele do sério e ele acaba me agredindo. Tenho que
respeitar a hierarquia das decisões dentro do relacionamento. Tenho que
sustentar joguinhos na paquera. Tenho que gostar de romance. Tenho que saber
``aonde e o meu lugar``.
Sou mulher. Hoje é meu dia. Tenho
que agradecer os parabéns. E as mensagens bonitas. E as flores e chocolates se
houverem, mas cá estou de novo me queixando da sociedade patriarcal. Cá estou
de novo pedindo direitos. Cá estou de novo “fazendo mimimi”, falando de índices
de feminicídio, debatendo legalização do aborto, marchando como uma vadia,
pedindo por mais representatividade, explicando porque ainda e necessário se
falar de feminismo. Hoje é dia de festa e homenagem, porque eu insisto em
problematizar tanto? Já disse que eu não posso ser chata?
Hoje é um dos meus dias sendo mulher e sendo mulher todo dia
esse texto se repete até as coisas ficarem “normais”, até ser normal não querer
sair de saia pra se proteger, até ser normal não andar sozinha pra se poupar,
até ser normal ter sempre uma amiga ao menos em condições de sobriedade para
evitar qualquer tipo de abuso. Naturalizar o inaturalizável é um dom muito
útil.
O meu desejo nesse dia é o mesmo de todos os outros dias:
ter voz, ter uma existência reconhecida, ter dignidade garantida, direitos
assegurados, ver debates importantes sendo geridos por quem entende deles, ser
respeitada, não sentir medo.
É como diz Adélia Prado, no seu poema “com licença poética”:
“Quando nasci um anjo esbelto, / desses
que tocam trombeta, anunciou: / vai
carregar bandeira. / Cargo muito
pesado pra mulher”. A minha bandeira não só carrego como defendo. Todo dia. O
dia todo. Sempre que precisar.