quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Agulha no palheiro


Culpada, confesso: eu escuto conversa alheia. E hoje estava tomando um suco enquanto ouvia um grupo de garotos e garotas conversar. Fulano tinha terminado o namoro e tinha se arrependido pois tinha percebido que sua ex era uma menina especial. Opa,"especial". Sempre que escuto essa palavra penso se existe alguém ser especial ou se alguém está especial para nós.

Veja, se o "especialismo" atribuído a pessoa for fruto de nossos olhos desejantes a pessoa só pode estar especial e só estará enquanto nosso olhar aí a enquadrar, só conseguiremos enxergar essa característica dependendo de variáveis nossas, como por exemplo quando estamos apaixonados ou admiramos muito alguém. Talvez, misturando os dois conceitos de ser e estar especial, nossos olhos coloquem prazo de validade na interessância quando encontramos a dualidade, o outro lado da pessoa, o que nos agride, morde, assusta, afasta. É uma dicotomia como a da vida-morte, indissolúvel a da curiosidade-preguiça de conhecer pessoas, gostar de pessoas, se decepcionar com pessoas, começar tudo de novo. Só que eu sou uma romântica e gosto de olhar pedra e ver poesia (embora, como Adélia Prado, tenha meus dias em que Deus me rouba a poesia e ao olhar pedra eu só veja pedra mesmo) então gosto da ideia de pessoas serem especiais por si só, pelas características que possuem e as diferenciam das demais e as tornam capazes de despertar sensações incríveis em nós. A sensação de achar alguém "especial" e conviver com essa pessoa é das mais entusiasmantes que existem e se não usarmos dois pesos e duas medidas vamos deixar as pessoas especiais partirem da nossa vida - sejam amigos ou romances - apenas por serem, bem, pessoas, falíveis, assim como nós.

Os contos de fadas e lendas folclóricas usam muito dos rituais simbólicos para descobrir se alguém é especial. Tem a história da princesa que dorme em cima de vários colchões e mesmo assim sente a pequena agulha embaixo deles. Tem a história da Bela Adormecida que só pode ser acordada pelo beijo de amor verdadeiro. Etc e tal. Mas nós temos ritualizado cada vez menos e tal qual Rubem Alves pensava talvez isso faça falta aos nossos processos simbólicos de autoconhecimento e de conhecimento do outro e da vida.

Se eu tivesse tido a chance de dizer algo a fulano eu cantaria um pouco de Gal Costa: é preciso estar atento e forte. Óbvio que o que torna as pessoas especiais é idiossincrático e o que eu acho lindo talvez seja só comum para outra pessoa mas ainda assim eu arrisco meus palpites. Se a pessoa - sejam essas pessoas sentadas na mesa com você, os seus amigos, seja a sua fulana perdida ou a próxima que você encontrar - consegue te fazer sorrir até quando a situação é trágica ou até de você mesmo, se até engarrafamento melhora na companhia dela, se o senso de humor de vocês faz par, se você se sente a vontade para falar de coisas pessoais se sentindo ouvido, se aprende coisas novas com ela, se você sente que a pessoa tem preocupação real com a sua vida e faz o que pode para melhorar os seus dias, daquele jeito tão pessoal que é só dela... Abra os olhos. Pisque os olhos. Esfregue os olhos. Tire esse cisco daí. Coloque óculos. Pingue colírio. Pegue a lupa. Não deixe que seja lá o quê que embaçou sua vista e fez com que você se afastasse desse amigo ou dessa paquera cegue você. Se a sua fulana tem o sorriso mais doce que você já viu, parece que te desmonta por dentro quando te olha nos olhos e o beijo parece que foi encomendado: abra os olhos. Não te conheço Fulano. Não sei as razões do fim. Se for algo muito grave, guarde essas dicas para detectar a próxima pessoa especial que cruzar seu caminho. Se for algo mais suave, abra os olhos e vá lá fora.

É muita palha pra pouca agulha. Como diz Arnaldo Antunes: "tem muito pouca dúvida e muita razão/ tem muito pouca ideia e muita opinião/ muita pornografia e muito pouco tesão / muita cerimônia e muito pouca educação / muito pouca gente e muita multidão."
Talvez você precise disso, de uma overdose de palha de verdade, pra perceber que quem aos seus olhos já tinha virado palha ainda é agulha (e não esqueça mais que agulhas, como pessoas, também podem nos ferir as vezes).

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