Tem pesquisas científicas que comprovam que mesmo nossos
pais tem um filho “preferido”. Todo mundo já se queixou que o professor “protegia”
fulano. Tem um meme na internet que diz
que mesmo quem tem “vários esquemas” (tradução: está saindo e se relacionando
com várias pessoas de forma simultânea) tem no repertório uma pessoa que se
destaca – talvez aquele que ganhe a preferência na fila das saídas ou a
disponibilidade no final de semana, sempre mais disputado.
É inevitável dar caráter valorativo as coisas, as
experiências, as pessoas. Categorizamos por rótulos para que tenhamos a
impressão (falsa) de as apreendemos com inteireza, de que as limitamos, de que
as compreendemos. Tateamos no escuro como cegos na floresta e tentamos a todo custo
ter qualquer noção de segurança, de saber onde estamos pisando. Não sabemos.
Nunca saberemos. É a nossa sina. A olho nu é tudo muito engraçado, somos tanto
a repetição de nós mesmos e não nos damos conta.
Fingimos que somos todos muito diferentes e na verdade somos
muito mais parecidos do que supõe o nosso ego e ainda assim elegemos pessoas para
nos saltarem os olhos, para fazerem com que no canto dos nossos olhos “a menina
dance.” E não, isso não é ruim. Tem gente que nos capta sem que consigamos
dizer com o quê, se é o cheiro, o sorriso aberto, o desenho do olhar, o toque
da pele, o som da voz, a paz que desperta ou a turbulência que nos provoca.
Das coisas mais
generosas que podemos fazer é estender ao outro a sensação de que ele é
especial – de que algo que emana dele nos toca. De que o encontro que estamos
tendo com ele – por mais que tenhamos tido outros semelhantes – é único por ser
com ele, mundo que se desvela sob os cuidados dos nossos olhos, mundo que ao se
abrir nos interessa e comove. Mundo que ao colidir com o nosso “mexe qualquer
coisa dentro doida, já qualquer coisa doida dentro mexe”. As estratégias são as mais diversas mas todo
mundo está caminhando na própria companhia tentando entender o próprio valor.
“Desespecializar” as pessoas tornando-as iguais as outras
porque nosso repertório de encontro é limitado é das coisas mais duras que se
pode fazer. Eu sei, alguns se motivam e começam a “tentar conquistar qualquer
coisa assim em você: o que será?” e outras apenas se afastam, pois tem coisas
que não se ensinam – ou se é ou não se é. As melhores coisas são. Sem a lógica
do domínio da nossa mente. Simplesmente jogadas no caos que nos cerca.
Vinte e oito anos atrás duas pessoas que eu amo e admiro
resolveram oficializar o quanto se achavam especiais aos olhos uma da outra.
Certamente ele cravou os olhos em muitos olhos até chegar naqueles olhos verdes
dela. Certamente ela ouviu muitas palavras bonitas até seus ouvidos serem
tocados pelas dele. Inquestionavelmente ele tinha achado outras pernas bonitas
e ela tinha visto outros rapazes tocando timbau com cara de “artista-de-humanas”.
Mas ainda assim, dentre todas as mesmices que nossos roteiros parcos inscrevem
na gente essas duas pessoas se encontraram e se destacaram no jogo de luzes uma
da outra.
Nâo, não sei dizer como eles começaram a perceber isso pois
quando a gente abre mão de controlar a vida ela nos preenche com as mais
variadas surpresas: podemos sentir a confiança de adormecer (já se deram conta
do quanto adormecer na presença do outro nos coloca em posição de vulnerabilidade?)
, podemos ter olhares que “não se consolam” se não imersos no do outro, podemos
nos ver sentindo falta na distância, nos entregando em um sorriso, podemos nos
ver contando “segredos de liquidificador” que sabemos não sair falando por aí
ou falando com todas as silabas das palavras. Se enamorar não significa ser
clichê. Não significa nada, na verdade. Se vive e só.
Que bom que vinte e oito anos depois vocês continuam se encontrando
e escolhendo se achar especiais. Não tem a ver com o tempo ou com o contrato. O
que desejo a vocês é que fiquem sempre enquanto essa “especialidade” fizer
cosquinha no peito de vocês. O bonito da vida é isso, pai e mãe.