terça-feira, 1 de março de 2016

O regresso (ou uma metáfora sobre os homens do nosso tempo)



(*Contém Spoilers)

A paisagem é árida. A natureza é selvagem. A vida é rude. As interações são ásperas. Os riscos, eminentes. Todos estão juntos, mas cada um está por conta própria. Não há tempo para minúcias. Sobreviver é um imperativo, como diz um dos personagens a certa altura: “e eu lá estou vivo? Eu vou ganhando um dinheiro para poder sobreviver e vou sobrevivendo. ” De que matéria são feitos os homens – o gênero masculino em sua literalidade - que habitam tal espaço? Os personagens são construídos de modo a oferecer as mais variadas respostas sobre suas fibras e constituições.

Fitzgerald, nosso antagonista, é tão duro quanto o solo que pisa e tão gelado quanto o inverno que se aproxima. Representa o masculino “antigo”, moldado por condições adversas, esculpido para a sobrevivência. Forte, braçal, objetivo. O homem que faz o que há para ser feito sem questionar ou sentir o peso de suas ações – não há tempo para nada disso quando só os fortes resistem. Tão centrado no preço das coisas que acaba por ignorar seus valores. Na natureza selvagem apenas os selvagens sobrevivem, ele acredita e assim se “selvageriza”.

Fitzgerald se opõe diretamente a seu improvável companheiro de jornada, Bridges, que em seu sopro de juventude representa a nova configuração de homens que vem a surgir. O antigo versus o novo. Bridges ainda é  pouco experiente, porém é capaz de sentir empatia, é capaz de abdicação, é capaz de assumir riscos por razões exteriores a si que podem inclusive colocar sua sobrevivência em risco, é capaz de olhar para dentro de si e se avaliar e se sentir. Todavia é ingênuo. Muitas vezes ignora seus instintos. Como tudo que se apresenta em insurgência ainda não confia em si o suficiente e em oposição ao modelo de masculinidade antigo e imperativo muitas vezes acaba aceitando arcar com escolhas que não fez. Em resumo um moleque, que ainda tem muito para entender e crescer, mas que tem bom coração.

Outro expoente dessa nova masculinidade é o capitão Andrew. É justo em suas posturas. Enxerga a responsabilidade que tem sobre seus homens sem imperativo –aceita perguntar, escutar e delegar. Expõe seus sentimentos – como na delicada (e rara) cena em que o silêncio do filme é quebrado por sua voz contando que semana passada ele se lembrava do rosto de sua esposa e hoje teme que ao voltar para casa não a reconheça mais pois esqueceu-se de sua aparência. Um homem que vive a dicotomia de ser chamado a assumir o lugar do masculino “antigo” embora seja um masculino “insurgente” – um homem que vive em torno do desabrido e da morte, mas que acha espaço para falar de seus medos e amores.

Glass é um homem sábio. É o expoente masculino do livro “mulheres que correm com lobos”. Familiarizado com os ciclos da natureza; inclusive o curso natural da vida e da morte de tudo que a compõe. Abraça o silêncio. Respeita a voz do seu sexto sentido. Sabe onde vivem suas raízes. Viveu e vive as suas dores, tão mais intensas que qualquer cicatriz de seu corpo físico – e não somos todos assim, guardando nossos maiores mistérios embaixo das peles? E como já diz Leminski, um homem com uma dor é muito mais elegante.

A sobrevivência de Glass é inequívoca em seu lembrete: sozinhos, não somos. Ele é feito de fibra de resistência certamente, porém sem a piedade do capitão que costura suas feridas apostando em sua sobrevivência, sem a abnegação de seu filho e de Bridges que aceitam serem ovelhas desgarradas para cuidá-lo ou enterra-lo ainda que precisem se enterrar juntos, sem a generosidade do índio que o acolhe e que lambe suas feridas em seus momentos de maior fragilidade (e quantas vezes fomos o índio, hein? Encontramos, partilhamos, ensinamos, cuidamos e acabamos sozinhos com nossas dores depois de tanta benfeitoria? Eu sempre, acho que é a sina da minha vida inclusive) ele simplesmente não teria sobrevivido.

Assim somos todos nós, antigos, novos ou sábios, sem a ponte de intermédio dos outros não chegamos a lugar algum por mais motivados ou fortes que sejamos. Que honremos quem nos compõe então, pois é como disse Gonzaguinha “Aprendi que se depende sempre / De tanta muita diferente gente /Toda pessoa sempre é as marcas /Das lições diárias de outras tantas pessoas”.


Obs. Pessoas muito mais capacitadas escreveram críticas ao filme abordando-o diretamente. Optei por não fazê-lo pois "não sou capaz de opinar". Não quero resumir o filme, nem abordar os aspectos de caráter, esse texto realmente pretende usar os tipos masculinos apresentados no filme para abordar as mudanças do que socialmente se espera de um "homem" na história.

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